DÉCIMA PARTE. PARA ROMA — Página: 135
(Tradução: Padre José Vicente Martins, SJ em 2013)
(Tradução: Padre José Vicente Martins, SJ em 2013)
Paulo faz sua última defesa a Festo e Agripa.
Embarca para Roma. Naufraga perto de Malta, fica na ilha três meses.
Finalmente Roma. Paulo, prisioneiro, tarda dois anos a comparecer perante César, e escreve cartas às novas Igrejas.
PAULO tinha apelado para César e esperava a ordem de se dirigir a Roma. Os dois anos da sua prisão em Cesareia não foram anos perdidos, porque apesar de estar de mãos acorrentadas, com a ajuda de Lucas escreveu muitas cartas para fortalecer e encorajar as diferentes igrejas.
Estava um dia à janela da sua cela a ditar uma dessas cartas, dizendo que embora estivesse muito longe, se sentia ao lado deles em espírito, a olhar como um pai orgulhoso para a firmeza da sua fé. Enquanto assim ditava, levantou o seu jarro de água e regou uma pequena planta que crescia no peitoril da janela. “Vós estais plantados em Cristo,” disse, ”e crescereis, como cresce do solo uma planta, tirando força pelas raízes para se estender ao alto e ao largo em alegria e gratidão para com Deus….”
A porta da cela abriu-se e entrou o Centurião Júlio, com indicações do Governador Festo de que Paulo ia ser levado para a sala da corte.
“Lucas,” disse Paulo,”talvez tenham chegado ordens de eu ir para Roma!”
Júlio respondeu que não tinha ouvido nada a esse respeito , mas que Herodes Agripa estava com o Governador. “Ele é Judeu como tu,” sublinhou, “e por isso talvez vá dizer uma palavra a teu favor.”
Paulo confirmou que estava ansioso por ir a Roma – embora, acrescentou com um sorriso, fosse mais agradável ir sem as cadeias.
Desta vez a atmosfera da sala da corte era aprazível e fácil, porque se tratava mais de um espectáculo para agradar às visitas reais do que de um julgamento legal.
Paulo tomou o seu lugar de frente para o Governador, e depois do silêncio de curiosidade quando entrava, levantou-se um burburinho, que acalmou quando Festo se ergueu para explicar que ali estava um homem contra o qual toda a nação Judaica parecia ter levantado armas. Ele próprio não podia encontrar nele alguma falta, sobretudo nada que merecesse a morte; mas o prisioneiro tinha escolhido ir a Roma apresentar o seu caso ao Imperador.
“Agora, encontro-me numa espécie de dilema,” disse, “porque uma vez que não existe contra ele uma acusação específica, que posso eu dizer dele na carta a Sua Majestade?”
Os seus ouvintes riram, e o Governador continuou a dizer que esperava fervorosamente que o Rei Agripa ajudasse a desvendar o mistério de Paulo de Tarso.
Paulo, chamado pelo Rei para falar, apelou para ele como um Judeu familiarizado com os costumes e controvérsias da sua raça.
Desde a sua juventude, disse, tinha pertencido ao grupo mais rigoroso da religião deles, os Fariseus – um facto bem conhecido de todos os Judeus que tinham testemunhado contra ele. Estou aqui encadeado por uma única razão – por acreditar de todo o coração na promessa feita a nossos pais: a ressurreição dos mortos.”
Festo voltou-se a olhar para Berenice, que devolveu com um ligeiro sorriso de triunfo e segredou a Agripa, “Foi isto que te disse.”
“Diz-nos então,” solicitou Agripa, “qual foi a questão que os Judeus em Jerusalém tiveram contigo e as tuas crenças.”
“Eu vou dizer-vos,” respondeu Paulo. “Os homens que me acusaram afirmam que acreditam na vinda do Messias e na Ressurreição. Mas quando estas duas coisas em que dizem acreditar lhes são apresentadas à frente como factos vivos, não conseguem suportar a verdade. Preferem mentir e enganar e perseguir com disfarce rectidão, do que aceitarem o cumprimento das promessas de Deus. Porque a promessa de Deus foi cumprida. O Messias veio para nós na pessoa de Jesus de Nazaré que Deus ressuscitou dos mortos.”
Houve na corte um murmúrio de riso incrédulo. Agripa estava embaraçado, Festo desorientado. Somente Berenice mostrava extrema exaltação.
“Porque é que,” perguntou Paulo, “vos parece incrível que Deus ressuscite os mortos?”
Festo disse que não estavam a desapreciar as suas crenças religiosas – mas somente a sua aplicação. Sabiam que Jesus de Nazaré tinha morrido crucificado cerca de trinta anos antes. Como é que Paulo podia dizer que Deus O tinha ressuscitado dos mortos?
“Porque O vi,” disse Paulo calmamente. Berenice não pôde conter-se mais. “Quando, onde?” perguntou ela.
“Dois anos depois de Ele ter sido crucificado,” disse-lhe Paulo. “Eu não era um dos Seus discípulos, sabeis, longe disso. Naqueles dias era eu o perseguidor, fui eu que atirei para a prisão homens que se atreviam a usar as palavras “Jesus o Messias,” eu que com a autorização dos Sumos-sacerdotes me metia a caminho de cidades distantes, para prender quem quer que acreditasse nEle. Tinha mais ódio no meu coração naqueles dias por Jesus de Nazaré, do que os homens que hoje querem tirar-me a vida.”
“Mas diz-nos o que é que viste,” insistiu Agripa.
Paulo dirigiu-se a ele directamente. “Eu vi o Messias. Estava diante de mim num braseiro de luz mais deslumbrante que o sol do meio-dia. Era Jesus.”
Agripa inclinou-se para a frente. “Como é que sabes?”
“Foi ele que mo disse,” replicou Paulo. “Imaginas que eu, o maior inimigo de Jesus, iria inventar uma tal história, e podia ter aceitado pregar mesmo aos Gentios o Messias de Israel, se não O tivesse visto e recebido dEle o meu mandato?”
“Que mandato?”
“Vou dizer-te com as Suas próprias palavras, Rei Agripa. “Eu te envio para abrires os olhos dos Gentios, para os tirar das trevas para a luz, do poder de Satanás para o Próprio Deus, para poderem conhecer o perdão dos seus pecados e ocupar o seu lugar com todos os que em Mim têm fé.” Podem duvidar que isto foi uma visão Celeste? Eu não tive dúvidas, e empenhei-me em obedecer ao mandato do meu Senhor. Foi esta a razão pela qual os Judeus me prenderam no Templo, apesar de o que eu prego ser apenas aquilo que os profetas e Moisés anunciaram: que o Cristo havia de sofrer e que Ele havia de ressuscitar dos mortos.”
Agripa tinha ficado involuntariamente comovido com a sinceridade de Paulo, mas Festo estava cada vez mais assombrado e Impacientemente explodiu: “Tu estás a ficar doido, Paulo. Todo o teu estudo e aprendizagem te levaram à loucura!”
“Não, não estou doido, Excelência,” disse Paulo.”Estas coisas foram profetizadas, e tornaram-se verdadeiras. O Rei sabe do que estou a falar. Diz-me Rei Agripa, acreditas nos profetas?” O Rei não respondeu. Ficou embaraçado ao ser um Judeu questionado por outro Judeu daquela maneira. Inabalável, Paulo continuou: “Acreditas. Eu sei que acreditas.”
Agripa sorriu comprometido. “Daqui a pouco estarás a afirmar que me tornei Cristão!”
A voz de Paulo soou com todo o fervor dos seus dias de pregação. “Quisesse Deus que todos os que hoje me ouvem pudessem estar na situação em que eu me encontro.” Levantou as mãos acorrentadas. “Mesmo com estas correntes.”
O Governador e os seus convidados reais falavam juntos em voz baixa.
“Não podes punir este homem,” disse Berenice. “Há nele qualquer coisa de santidade.”
“Ele não é certamente um prevaricador da lei” comentou Agripa. “Mas dizes que apelou para César?”
Festo acenou que sim.
“Então é para César que deve ir.”
Assim, como prisioneiro com cadeias, Paulo começou a sua viagem para Roma. Com outros prisioneiros foi levado para bordo de um pequeno bote costeiro que viajava de Chipre para o porto de mar Asiático de Mira na Lycia, onde Júlio, o Centurião que os tinha a seu cargo, negociava com o capitão proprietário de um barco Alexandrino de grão, para os transportar para a Itália.
O barco estava já excessivamente carregado de grão e tinha uma tripulação numerosa. O capitão estava indeciso.
“É uma ordem governamental. Serás bem pago por isto,” lembrava-lhe Júlio.
“E os prisioneiros, são de confiança? Eu não quero perturbações a bordo, e não posso permitir nenhum atraso.”
“Podes ver que estão encadeados e bem guardados,”disse Júlio.
O capitão olhou para os prisioneiros esfarrapados, seminus, encadeados pelos pulsos e tornozelos. Então notou Paulo um pouco afastado deles com Lucas.
“Ele é um caso especial, um cidadão Romano,” disse Júlio. “O Governador deu ordens para ele ser tratado como um passageiro, não como um prisioneiro. O outro homem é um amigo dele, um médico que foi autorizado a acompanhá-lo na viagem.” O capitão, satisfeito por levar um médico a bordo, estava preparado para tirar o melhor partido desta carga extra de prisioneiros. E assim embarcaram no barco, içaram a vela e começaram a viajar em direcção à próxima paragem do percurso para Roma.
Avançaram pouco porque o vento estava contra eles. Ventos fortes fustigavam a enorme vela central, enquanto os homens dos remos da condução lutavam por manter o barco na rota em mar bravo. O vento aumentou para grau de tempestade, mas por fim depois de muitos dias chegaram à ilha de Creta, e navegando com grande dificuldade pela costa ao longo da praia rochosa do sul, refugiaram-se no pequeno porto chamado Fair Havens, desceram a vela e ali lançaram âncora.
Como um prisioneiro protegido, ainda que ainda com cadeias, Paulo estava na cabine com o capitão e com Júlio enquanto decorria uma consulta. O capitão, preocupado com a demora, não estava com boa disposição.
“O tempo é sempre incerto nesta altura do ano,” disse ele, “mas nunca antes tive que lançar a âncora aqui.”
“Imagino que teremos que ficar aqui até o tempo melhorar?” perguntou Júlio.
“Agora não vai melhorar até à Primavera. Levámos dois meses para chegarmos aqui. Foi o peso extra a bordo que nos atrasou. Eu tenho a carga para entregar, senhor, e não posso ficar aqui todo o Inverno.”
“Eu estou a pensar na segurança do barco e dos que vão a bordo.”
“A segurança do barco é da minha responsabilidade.”
“Claro, disse Júlio pacientemente “mas tu mesmo dizes que ele está sobrecarregado.”
“Bem, não há nada que eu agora possa fazer acerca disso, a menos que queirais deitar os prisioneiros pela borda fora.”
“Vale tanto como a minha vida perder um único prisioneiro,” disse Júlio com um sorriso.
“E vale tanto como o meu trabalho, perder a minha carga ou atrasar a sua entrega,” e o capitão saiu à pressa para o convés.
“Tens razão.” Retorquiu Júlio. Ele tinha-se esquecido do prisioneiro Paulo, que tinha estado a ouvir a conversa e agora falou. “Nós devíamos ficar aqui. Seria loucura levantar a âncora com este tempo. É melhor atrasar do que perder o barco, a tripulação, toda a carga e tudo o mais.”
“Eu penso que devemos deixar a decisão para o capitão,” disse Júlio, e abandonou a cabine para se juntar com o capitão no convés. Encontrou-o a informar-se com o timoneiro. O pequeno porto era de facto um céu, extraordinariamente calmo e abrigado do vento que soprava furiosamente no mar alto.
“Eu não sairia para o mar nestas condições, senhor,” dizia o timoneiro, “mas se o vento melhorar e tivermos vento de sudeste, podíamos seguir ao longo da costa até Phenix na parte ocidental da ilha. Estará na nossa rota e é melhor lugar para o Inverno do que aqui.”
O capitão encontrou-se com Júlio e explicou-lhe a situação. Neste lugar, disse, estavam completamente isolados. Não havia cidade a não ser Lasea, uma pequena localidade a algumas milhas do interior.
“Eu procurei que a minha tripulação pensasse nisso, senhor,” disse ele. “Posso ter que lhes dar alimento todo o Inverno – o que significa ter que arranjar abastecimento fresco. Em Phenix há uma cidade bem dimensionada. É um porto autêntico com outros barcos. Poderemos encontrar algum que aceite levar parte da minha carga ou os teus prisioneiros.”
“Tens razão, senhor,” disse o timoneiro friamente. “Foi a peso extra que esteve contra nós, tanto como o tempo.” O Centurião sentiu que era inútil argumentar contra a opinião destes dois experientes homens do mar.
“Como diz, Capitão,” respondeu ele, e desceu para inspeccionar os prisioneiros e dar a conhecer aos seus marinheiros as intenções do capitão.
No dia seguinte, quando Lucas estava sentado a escrever o seu diário, e o capitão e Júlio com a discussão já esquecida estavam a jogar os dados, Paulo estava sentado a ouvir o ruído da ondulação. Pareceu-lhe que estava a aumentar menos. Subitamente ouviram-se pegadas apressadas ao longo do convés e o timoneiro aproximou-se com grande exaltação.
“O vento mudou, senhor!” gritava ele.
O capitão atirou com os dados e apressou-se a subir ao convés com o timoneiro, e depressa o barco ganhava vida com gritos e corridas.”Todas as mãos no convés… Preparados para levantar a âncora…Atentos para içar a vela.” Depois dos dias de forçada ociosidade, os homens corriam para o seu trabalho com vontade, e um grito de alegria se levantou quando a enorme vela encheu com a brisa de sudeste e o barco saiu para fora de Fair Havens. O timoneiro seguiu o plano que tinha sugerido ao capitão e manteve o barco próximo das altas falésias encarnadas. Havia correntes perigosas a pouca distância no mar alto, e a única rota segura era navegar perto da praia. Tudo parecia estar a correr bem, quando de repente o temporal mudou novamente e uma terrível ventania de nordeste soprava das montanhas contra eles, afastando-os da praia. O timoneiro agarrou-se aos instrumentos de navegação, tentando desesperadamente manter o rumo. O convés inclinou-se perigosamente com o bombordo quase debaixo da água. Paulo e Lucas esforçaram-se para avançarem ao longo do convés e poderem dar uma ajuda aos marinheiros que se empenhavam com toda a sua força procurando evitar que a vela apanhasse todo o impulso da ventania. As falésias encarnadas que esperavam que fossem um abrigo para eles, pareciam agora agoirentos, e quando o barco se levantou e abateu no mar turbulento, foi como se fossem desfazer-se contra as rochas. O capitão viu o perigo e decidiu arriscar o mar alto. “Que corra mais depressa que o vento.”
O timoneiro deixou escapar os remos da condução. Os homens das cordas da vela não aguentaram o esforço e as cordas fugiam-lhes das mãos. Alguns deles caíram no convés devido à inclinação do barco ao dar uma volta, apanhando toda a rajada da ventania nas velas. O barulho do vento e a agitação do mar eram ensurdecedores e o madeiramento do barco chiava e rangia como se o barco estivesse a despedaçar-se. Em baixo no porão os prisioneiros gritavam e choravam de terror e caíam, com o impedimento das suas cadeias. Paulo desceu para tentar dar-lhes coragem.
No convés o capitão gritava outra ordem. “Ponham a chalupa a bordo.”
O timoneiro olhou por cima da popa para o mar enfurecido, onde a chalupa que eles rebocavam atrás estava completamente submersa.
“Não podemos puxá-la nestas condições, senhor.”
“Ponham-na a bordo,” repetiu o capitão. “Podemos precisar dela.” Tomou os remos da condução, enquanto o timoneiro mandava um grupo de marinheiros para a corda que arrastava a chalupa. “Levantar! Levantar! Levantar!” gritava ele. A chalupa elevou-se acima da superfície e foi atirada contra a parte lateral do barco, mas precisamente quando parecia terem uma segurança firme, um dos homens perdeu o seu esforço , e a corda começou a escorregar-lhes das mãos.
“Todas as mãos! Todas as mãos!” gritava o timoneiro. Lucas deixou um marinheiro ferido que estava a tratar, e Paulo correu de entre os prisioneiros, e depressa a chalupa foi colocada a bordo. Mas o timoneiro chamou a atenção do capitão para um outro problema.
“O barco vai partir-se ao meio se isto continua, senhor,” disse ele.
O capitão acenou.” Pensas que podemos fazer a vistoria?” perguntou ele.
“Nem pensar senhor, disse o timoneiro.“Não, enquanto navegarmos a esta velocidade.”
“Se pudéssemos navegar para sotavento de uma das ilhas, poderia haver ali abrigo suficiente. Tenham um homem preparado e mandem outro homem subir aos mastros para ficar de atalaia a fazer uma pesquisa.
“Em cima, senhor?” perguntou admirado o timoneiro.
“Foi o que eu disse,” respondeu o capitão.
Pouco depois um marinheiro, despido até à cintura e regado com spray, subia o mastro apertando bem de vez em quando o corpo contra ele, devido à força do vento. Arrastou-se até à barra transversal, e sentou-se ali de uma forma bastante precária. O capitão decidiu dar ordem de mudar de rumo.
Subitamente houve um grito do pesquisador. “Terra… Terra olá!”
“Deve ser a ilha de Clauda, calculo, senhor,” disse o timoneiro, e quando o capitão lhe ordenou que tomasse a direcção dela, ele contestou a dizer que seriam conduzidos para as rochas.
“Seria melhor isso, do que partir no mar alto,” disse o capitão.
O timoneiro manteve a terra a estibordo e viajou para oeste, até estarem ao abrigo da ilha de Clauda. Aí baixaram a âncora e arrearam a vela, e Paulo e Lucas puderam ver os marinheiros a lançar um cabo à água na proa e arrastá-lo até ao meio do barco. Voltaram a fazer o mesmo depois. Isto era “verificação” – lançando cabos por baixo do casco para verificar a segurança do madeiramento. Habitualmente fazia-se somente no porto. Os homens sentiram-se satisfeitos quando as cordas ficaram finalmente seguras.
O capitão tinha agora feito tudo o que podia fazer para salvar o barco e as vidas dos homens a bordo. Veio a noite e com ela, ainda outra tempestade. A ligeira protecção da ilha e a âncora que tinha sido lançada, não foram suficientes contra as forças que os impeliam, e uma vez mais começaram a ser levados. Conduzir era impossível. Durante catorze noites estiveram à mercê da tempestade. De dia não havia sol para os alegrar, de noite faltavam estrelas para os orientar. Toda a esperança de se salvarem parecia perdida.
Na manhã do décimo quinto dia, a tempestade era ainda furiosa. Paulo estava a dormir na cabine. O capitão e Júlio estavam sentados silenciosos e desanimados. O capitão olhou quando Lucas entrou, a perguntar como estava a sua tripulação – porque Lucas tinha estado a dar a ajuda que podia tanto à tripulação como aos prisioneiros.
“Estão mal, a maior parte deles, senhor,” disse Lucas. “Há já alguns dias que não comem nada.
“Porque não? perguntou o capitão. “Temos ainda bastante comida. Não a deitámos fora com a minha carga.”
Lucas explicou que uma grande quantidade se tinha estragado com a água do mar, e a maior parte dos homens estava demasiado doente ou tinha medo de comer. O capitão estava preocupado e disse que tinha que ir ter com eles, porque se os homens perdessem a coragem, o barco estaria realmente perdido. Mas ele não tinha nada reconfortante para lhes dizer.
Houve um súbito movimento no canto onde Paulo tinha estado a dormir. Levantou-se.
“Diz-lhes que tenham coragem,” sugeriu, “Nenhum deles há-de morrer.”
Os outros três olharam para ele admirados, e o capitão perguntou como poderia fazer tal afirmação, quando sabiam que não era verdade.
“É verdade,” disse Paulo com calma. “Quando estava a dormir o Senhor Deus falou-me num sonho. Prometeu-me que, ainda que perdêssemos o barco, nenhuma vida se havia de perder.”
O capitão, que era um homem supersticioso, e estava agora preparado para se agarrar a qualquer solução, perguntou qual era o deus de que falava, ao que Paulo replicou, “O único Deus.”
Houve uma investida de ar, e a ventania soprou com mais força na pequena cabine quando um soldado entrou, e empurrou a porta a fechar de novo contra o vento. Falou apressadamente em voz baixa com Júlio, que explicou aos outros que alguns elementos da tripulação estavam a baixar a chalupa como se tencionassem abandonar o barco.
“Se não estiverem todos a bordo ninguém se pode salvar,” disse Paulo.
Tomando o comando da situação, Júlio disse ao soldado que cortassem a corda, e puxando pelas espadas correram para o convés.
Houve algum protesto dos homens, a dizer que o que pretendiam era lançar âncoras no mar. Mas Júlio olhou para o lado e viu a chalupa na água. Imediatamente deu um golpe de espada na corda e a chalupa afastando-se do barco, foi apanhada pelas enormes vagas, atirada ao ar – e desapareceu de vista.
Levantou-se uma gritaria dos marinheiros, que sentiram que a sua última esperança estava perdida.
Voltaram-se furiosos contra Júlio, mas outros soldados vieram para seu lado com as espadas desembainhadas. E ainda os marinheiros os ameaçavam, gritando pragas contra o vento violento – porque tinham pouco a perder, e o medo da fome e das ondas era maior naquele momento do que o medo das espadas.
Subitamente, mais alto que a gritaria, ouviu-se uma ordem, “Venham comer!”
Soldados e marinheiros amotinados voltaram-se com esta ordem e viram Paulo de pé com um cesto de pão nos braços. Com relutância a princípio, os soldados juntaram-se à volta dele, e vagarosamente se acocoraram para receberem os nacos de pão que ele lhes entregava. Lucas ajudou um marinheiro doente a juntar-se aos outros, e alguns que estavam deitados no convés, doentes de fome, encontraram força suficiente para se arrastarem até junto de Paulo para receberem a sua parte. Paulo entregou o cesto a Lucas que o passou à volta; mas os homens estavam demasiado espantados para comerem. Olhavam para Paulo, admirados, porque o pão era bom e não encharcado com água do mar.
Paulo tomou um bocado do pão, e depois quase para si próprio disse a bênção familiar: “Graças Te sejam dadas a Ti, Ó Senhor Deus, Rei do Universo Que da terra nos dás o pão.”
Paulo comeu e os homens acompanharam-no, alguns cheios de fome, os doentes com algum esforço. O capitão e Júlio olhavam um para o outro inquisitoriamente, e houve uma agitação de esperança na cara do capitão. Enquanto ali estavam em súbito silêncio, com os únicos sons do monótono ruído do vento e o estremecer do barco, o timoneiro que tinha ido aos arcos, e ainda trazia um bocado de pão na mão, voltou para falar urgentemente em voz baixa com o capitão, que o acompanhou. Apontou para frente.
“Eu não sei que terra é, senhor,” disse o timoneiro. “Mas, seja o que for, há uma hipótese de encalhar o barco, se houver uma praia de areia.”
O capitão olhava atentamente a linha da costa, e disse com grande animação: “Há uma baía logo à frente. Parece areia.” Tomou a sua decisão. “Vamos arriscar, cortem as cordas da âncora, levantem a vela principal e deixem que o barco avançou com o vento.”
Naquela altura, o resto da tripulação tinha já visto a costa, e repetiu o grito jubiloso do timoneiro, “Terra, olá!” Então, com renovada esperança, dispuseram-se a obedecer às suas ordens. Num instante tinham cortado as cordas da âncora, e esperavam outras ordens.
Um marinheiro voltava a correr da proa. “Que é que se passa com os remos da condução, Senhor?” perguntou.” Com certeza andam às voltas e desviam-nos da rota.”
“Cortem-nos à deriva,” ordenou o timoneiro.
Júlio tinha-se juntado com o capitão na proa, onde quatro marinheiros estavam à espera preparados para içar a vela principal. O capitão estudava a direcção do vento antes de ordenar o levantar da vela. O timoneiro avançou para comunicar que não havia âncoras nem remos de condução.
“Bom” disse o capitão, “o vento agora está a nosso favor e a baía está mesmo à frente. Levantem a vela!”
Os quatro marinheiros puxaram as cordas. A vela principal subiu e encheu com o vento. A tripulação ficou animada de alegria, porque o barco começou a seguir a rota certa na direcção da ilha.
Foi Júlio quem deu o primeiro alarme de perigo, apontando para uma linha escura ao longo da costa, visível quando as ondas os levantavam. O timoneiro correu para a proa e deu um grito de horror. “São rochas,” gritou.
“Recolher a vela principal,” ordenou o capitão e a tripulação empenhou-se em obedecer, mas não conseguiam vencer a força da ventania que os empurrava. A vela principal continuava içada, e o barco corria para a frente sem controlo, na direcção de um rochedo parcialmente submerso. Houve um súbito solavanco de roçar nos rochedos e o barulho de madeira a estilhaçar. Foram todos atirados para o convés, quando a proa parecia levantar-se no ar e inclinar-se para o lado. O mar bravo começou a rebentar contra a popa, e pouco depois uma onda enorme rebentou contra o mastro deitando-o abaixo. Oscilou vagarosamente para um e outro lado e foi cair no mar.
Do porão um grupo frenético de prisioneiros algemados disputavam o convés, e foram ali impedidos por um soldado com a espada desembainhada, e a apelar a Júlio que desse ordem de matar os prisioneiros. “Eles soltaram-se, e vão tentar nadar por isso, senhor,” argumentou.
“Não,” disse Júlio. “Soltem-nos, e aqueles que sabem nadar saltem borda fora e se salvem se forem capazes.”
Somente os extremos do barco estavam agora fora da água, e o capitão viu que não havia um momento a perder. “Cada um por si!” ordenou, e imediatamente os prisioneiros, a tripulação e os soldados começaram a saltar ou a mergulhar para fora de bordo.
Júlio tirou as cadeias das mãos de Paulo, e disse-lhe que se salvasse, mas em vez de saltar ao mar, Paulo voltou-se para um grupo de prisioneiros acocorados, demasiado aterrados para se moverem. Disse-lhes que se salvassem, e eles responderam que não valia a pena porque – não sabiam nadar.
“Eu também não sei,” disse Paulo com boa disposição. “Vamos juntos. Havemos de encontrar algum bocado do naufrágio para nos agarrarmos. Vamos lá, irmãos.” Arrastou o homem que estava mais perto. “Vamos, todos vós, saibais nadar ou não. Há muita madeira a boiar para vos poder aguentar.”
Com Lucas agora a ajudá-lo, Paulo conduziu e convenceu os prisioneiros a saltar para a água, empurrando-os para pedaços do naufrágio que andavam a boiar , e ajudando um que pela sua fraqueza não era capaz de agarrar-se sem ser auxiliado. As ondas levavam-nos para a praia cada vez mais perto, e a voz de Paulo podia ser ouvida mais alto que o trovejar das ondas, animando-os a aguentar, porque em breve estariam salvos.
E salvos estavam, porque nem uma só vida se perdeu. Feridos e exaustos, alcançaram a praia. A maioria deles estava demasiado cansada para fazer outra coisa que não fosse estender-se na areia molhada. Tinham frio, e as vestes encharcadas colavam-se a eles, pesadas com a água do mar e com a areia.
Quase de imediato os nativos da ilha, que tinham visto o navio a naufragar nas rochas, foram ao encontro deles. Falavam uma língua estranha que não entendiam, mas trataram os estrangeiros naufragados com delicadeza pouco vulgar, acendendo fogueiras na praia para que pudessem aquecer-se e secar. Lucas andava entre todos eles, tratando as feridas e dando coragem aos que precisavam de conforto, enquanto Paulo carregava mais lenha para o fogo, e ajudava alguns dos mais cansados para junto do calor da fogueira.
Um dos ilhéus apontou subitamente ao longo da praia e clamou, “Públio…Públio.”
Um homem de toga Romana dirigia-se para eles. Era o homem chefe, e Júlio foi ao seu encontro, dando-lhe um aperto de mão Romano. Ficou aliviado ao descobrir que aquele homem sabia falar a sua língua, e depressa lhe explicou a sua situação.
“Nós teremos que ficar nesta tua ilha, senhor,” disse, “até podermos embarcar noutro barco que viaje para a Itália. Qual é o nome da ilha?”
“Malta,” disse Públio, e subitamente gritou aterrado, apontando para Paulo que tinha trazido mais lenha para o fogo, e agora trazia também uma pequena cobra enrolada ao pulso. “Uma cobra!” gritou Públio.
Os outros nativos começaram a falar excitadamente, e Paulo estremeceu de súbito, com uma dura e repentina dor quando a cobra lhe mordeu. Retirou então a cobra do seu pulso, atirando-a à fogueira, e com indiferença continuou a deitar lenha no lume.
Lucas rapidamente aproximou-se dele, pedindo para lhe ver o pulso, porque a mordedura da cobra era fatal, mas depois de o examinar… nem havia qualquer sinal.
Paulo sorriu com a preocupação dele. “Eu não sobrevivi à tormenta e ao naufrágio,” disse, “para ser morto por uma cobra. Não te esqueças que vamos a caminho de Roma.”
Um exaltado falatório começou entre os ilhéus quando se espalhou a notícia de este homem ter sido mordido por uma víbora mortal, e nem sequer tinha uma ferida. Alguns deles foram ajoelhar-se à volta de Paulo, tocando-lhe nas suas roupas e falando reverentemente na sua língua estrangeira.
“Que estão eles a dizer?” perguntou Júlio a Públio.
“Eles pensam que o teu amigo deve ser um deus,” respondeu Públio. “Quem é ele?”
Júlio disse-lhe que era um prisioneiro de Jerusalém, a caminho de Roma para ser julgado diante de César. “É crença minha,” acrescentou Júlio, “que nós não teríamos sobrevivido se não fosse ele.”
“Senhor,” disse Públio, “tu vais ficar em minha casa, e peço-te que tragas este homem também contigo, para que eu e a minha família possamos conhecê-lo. Aos outros teus companheiros será dado abrigo nas nossas vilas até podermos encontrar um barco que vos leve até à Itália.”
Ficaram na praia tempo suficiente para verificarem que todos os homens – soldados, marinheiros e prisioneiros – tinham sido bem acolhidos pelos simpáticos nativos; depois encaminharam-se para casa do homem chefe, onde a sua mulher e criados se apressaram a fornecer roupa lavada a Júlio, Paulo, Lucas e ao capitão que estavam muito agradecidos por terem uma tal hospitalidade, e poderem dormir com segurança em terra, naquela noite.
Malta foi a sua casa durante os próximos três meses. Durante esses três meses, Paulo e Lucas fizeram muito trabalho entre os doentes da ilha. Tudo começou quando Paulo impôs as mãos ao idoso pai de Públio que tinha febre alta com desinteria. Com o toque de Paulo, o ancião que estava muito agitado e sem descanso, ficou subitamente tranquilo.
Isso foi o princípio, mas a notícia espalhou-se, e depressa as mães começaram a trazer a Paulo as crianças doentes, e o terreiro fora da casa de Públio enchia-se de gente, homens, mulheres e crianças, alguns deitados em macas, outros a amparar os amigos. Lucas, como médico, examinava-os e tratava-os; e Paulo impunha-lhes as mãos.
Finalmente Júlio encontrou um barco que tinha passado o Inverno no porto e ia navegar para Itália. Quando chegou o dia de eles deixarem Malta, todas as pessoas vieram ao porto para assistir à sua partida, muitos deles a chorar. Os ilhéus carregaram-nos de ofertas: cestos de fruta, bordados de linho, grinaldas de flores, montes de ofertas de toda a espécie. Era uma bela manhã de primavera quando o seu navio, The twin Brothers (Os Irmãos Gémeos), começou a navegar pelo azul Mediterrâneo a caminho da Itália.
Uma vez mais Paulo era um prisioneiro, a caminho de Roma. Uma vez mais ele estava encadeado, e na companhia de outros prisioneiros. Chegaram a Puteoli na Itália e começaram a longa caminhada para Roma pela Via Ápia. Paulo, que caminhava a pé algemado a Júlio, à cabeça da errante procissão de prisioneiros e soldados, parou subitamente. Júlio que tinha sido educado com rigor, voltou-se com uma reprimenda nos lábios. Mas o olhar do rosto de Paulo silenciou-o. Estava transfigurado de alegria e com os olhos cheios de lágrimas a olhar para a frente da estrada. Júlio seguiu o olhar dele e viu um jovem a correr na sua direcção. Paulo levantou os braços, ofegante e a rir, o jovem atirou-se para o seu abraço.
“Timóteo, meu filho.”
“Mestre!”
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A Via Ápia |
Foi um encontro emocionante que Júlio, encadeado como estava a Paulo, partilhou com algum embaraço. Cerca de cem jardas acima da estrada estavam as Três Tavernas, um lugar de repouso para os viajantes da Via Ápia. Disse a Paulo que iriam parar lá para um pouco de algum descanso e que então ele teria oportunidade de conversar com o seu amigo. Continuaram a andar, Timóteo com o braço à volta dos ombros de Paulo. Ali nas Três Tavernas havia outra surpresa para Paulo, porque lá à beira da estrada, com o jumento a seu lado, estavam Priscila e Áquila. O fiel velho casal tinha feito a longa viagem desde Roma para saudar o seu amigo. Júlio desapertou a cadeia do seu próprio pulso, mas deixou os pulsos de Paulo encadeados juntamente. Disse a Paulo que podia ficar e falar com os seus amigos durante algum tempo e deixou-os juntos sozinhos, enquanto ele ia à estalagem para refrescar.
Paulo sentou-se na beira do poço com os velhos amigos, enquanto Timóteo lavava os pés do seu mestre e Lucas ia buscar comida e vinho para eles.
“Ora, isto é como chegar a casa,” disse Paulo. “Como é que souberam que eu ia a Roma?”
“Tu escreveste de Cesareia a dizer que vinhas,” explicou Priscila. “Os irmãos de Éfeso mandaram-nos a notícia.”
“Nós continuamos ainda com o nosso velho negócio, a fazer tendas”, disse-lhe Áquila.
“Arranjámos um bonito pequeno negócio nos bancos do Tibre. Os comerciantes trazem-nos novidades de todo o mundo.”
“E tu, Timóteo?” perguntou Paulo.
“Eu estava em Filipos, sabes,” disse Timóteo, “com Lídia. Ela ouviu de alguns comerciantes que tu tinhas apelado para César. Parti para aqui tão depressa como foi possível. Tinha receio de poder chegar demasiado tarde.”
“Podia ter acontecido se não tivéssemos tido o naufrágio,” disse-lhe Paulo.
Timóteo estava desejoso de saber o que tinha acontecido, mas Paulo estava mais ansioso de ouvir como eles e a pequena igreja que se reunia em sua casa tinham continuado, do que perder tempo a contar as suas próprias aventuras.
Priscila deu-lhe a certeza de que a igreja estava fiel e forte, embora sem crescer em número tanto como desejavam.
“O Senhor guiou-me para Roma,” disse Paulo. “Há nisto um desígnio. Se vou morrer aqui ou viver, não sabemos. Mas qualquer que seja o caminho que deva seguir, uma coisa é certa. A igreja de Cristo estará viva.”
Depois de terem tomado o pão e o vinho Júlio regressou e disse-lhes que tinham que retomar a viagem. Perguntou se Áquila e Priscila também os acompanhavam, e, quando o velho casal respondeu que sim, ele lembrou-lhes que eram ainda quarenta milhas até chegarem à cidade.
“Está bem,” disse Priscila alegremente.”Já fizemos a viagem muitas vezes. Temos o nosso jumento. Permite que o nosso amigo possa acompanhar-nos?”
“Muito bem,” disse Júlio. “Mas ele tem que ser outra vez encadeado, quando chegarmos à vista da cidade. É a lei, compreendem.”
Áquila disse que entendiam e agradeceu a Júlio. Foram buscar o jumento, e Júlio ficou a olhar para eles por um momento, depois foi reunir-se com as suas tropas e os prisioneiros.
Era uma longa e cansativa caminhada até Roma, mas muito menos cansativa para os cinco amigos do que para os soldados e prisioneiros atrás deles, porque havia muitas notícias a comunicar, e muitas mensagens de amor a dar da parte dos velhos amigos, e muito a contar acerca do progresso das igrejas.
Quando finalmente chegaram à vista da grande cidade de Roma, a cavalgada parou num campo mesmo fora das muralhas. Daí foi enviada uma mensagem para a tenda de Afrânio Burro, o Capitão da guarda Pretoriana, a comunicar-lhe que tinha chegado o Centurião Júlio de Cesareia com um grupo de prisioneiros, um de especial importância, porque era para comparecer perante do Imperador.
“Ah sim,” disse Burro, “eu recebi uma carta a respeito dele. Do Governador Festo de Cesareia. Paulo de Tarso, eh?”
Mandou chamar Júlio, e quando ele entrou disse-lhe brevemente que tinham levado muito tempo a chegarem ali. Júlio explicou que ele e os seus prisioneiros tinham sofrido um naufrágio, e tiveram que nadar para salvar as vidas na costa de Malta.
“Perderam algum prisioneiro?” inquiriu Burro.
“Não, senhor. Nem uma vida se perdeu. Nenhum da tripulação nem algum prisioneiro. Aquilo foi alguma coisa de milagre.”
Burro perguntou se o Judeu, Paulo de Tarso, tinha ocasionado alguma perturbação.
“Oh não, senhor,” replicou Júlio. “Ele viajou como passageiro. Foi ordem do Governador, sabes. Todos tivemos muito gosto em tê-lo a bordo, posso afirmar-te.”
“Porquê?” perguntou o capitão.
“Ele tem uma maneira própria,” foi a resposta. “Uma espécie de poder. Parece saber o que vai acontecer.” Júlio continuou a explicar acerca do naufrágio, e como Paulo tinha prometido aos homens que nenhum iria morrer.
Burro estava interessado – e curioso; mas disse que tinham que esperar para ver o que o Imperador ia fazer de Paulo. Entretanto podia alugar um alojamento para ele enquanto esperava o julgamento – embora tivesse de ser guardado.
Paulo estava sentado no seu aposento em Roma, ligeiramente acorrentado a um soldado Romano que estava sentado a seu lado, quando Lucas introduziu seis anciãos da sinagoga. Os Judeus olharam cautelosos e suspicazes, ainda que não hostis, e Paulo saudou-os formalmente.
“Eu devo agradecer-vos por terem vindo aqui visitar-me,” disse ele. “Como vêem” – e indicou as suas cadeias – “eu não tinha capacidade de olhar pela sinagoga, como gostaria. Por favor sentem-se.”
Os seis Judeus sentaram-se no chão, enquanto Lucas ficou à porta.
Paulo explicou-lhes porque é que ele, Judeu compatriota deles, estava em Roma como prisioneiro. Assegurou-lhes que não tinha feito nada contra os costumes dos seus antepassados. Mas apesar disso os Judeus de Jerusalém tinham procurado matá-lo e entregaram-no às autoridades Romanas, fazendo acusações falsas contra ele. Não estava em Roma para fazer queixas contra os Judeus, mas para se defender perante César. “Na verdade”, eu de verdade, “é pela esperança de Israel que trago estas cadeias.”
“A esperança de Israel?” perguntou um dos Judeus.
“Vós sabeis o que é essa esperança. “O Messias prometido”, disse Paulo, e os Judeus começaram a falar baixo uns com os outros. Paulo ouviu as palavras “Cristãos” e “problema na Ásia.” Então o porta-voz dirigiu-se a Paulo.
“É verdade que não recebemos cartas de Jerusalém a teu respeito, nem alguma palavra chegou até nós oficialmente ou não oficialmente. Nós estaremos interessados em ouvir o que tens a dizer, ainda que saibamos que esta seita que pregas de um Messias – Cristãos, creio que é assim que lhe chamam – não encontrou aprovação nas sinagogas de outros países.”
“Mas não permitais que seja dito de vós em Roma, meus irmãos,” suplicou Paulo, “que vós também rejeitastes o Messias. A maior angústia do meu coração, a dor que nunca me abandona, é este conhecimento de tantos dos meus compatriotas Israelitas terem falhado em agarrar nesta herança que é deles. Na verdade, eu quase preferia ser eu próprio afastado do amor de Cristo, se procedendo assim, pudesse trazer para Ele os meus irmãos.”
Continuou a lembrar-lhes as riquezas que Jesus lhes tinha entregado. Eles eram o povo escolhido por Deus ao qual Ele tinha revelado a Sua glória, dado a Lei, ensinado o caminho da verdadeira adoração, mandado os Seus profetas e agora enviado o Seu Messias. E contudo foi o Seu povo que fechou os corações contra a palavra de Deus.
“A palavra de Deus?” perguntou um dos Judeus, chocado. “Tu proclamas trazer aos homens a palavra de Deus?”
“De que outra maneira haveria de Deus falar aos Seus filhos a não ser pela boca dos Seus mensageiros?” perguntou Paulo tranquilamente. “Supões que a última palavra de Deus ao homem foram os dez mandamentos que Ele nos deu através da boca de Moisés? Perguntou Paulo tranquilamente. “Então e o Único Santo de que os profetas falaram? O Salvador que era para levar a humanidade para mais perto de Deus o Pai?”
Houve mais murmúrios desconfortáveis entre os Judeus, mas Paulo continuou.
“Eu vos digo que é contra Ele que os Judeus fecham os corações. Contra o Cristo que Deus enviou de maneira a não continuarmos a estar mais sozinhos na nossa luta contra o pecado e a doença, de maneira que tenhamos por fim uma oportunidade de construir o Reino de Deus na terra com a ajuda de Seu Filho Jesus Cristo.”
Houve mais murmúrios dos seus ouvintes. Alguns dos Judeus estavam interessados e impressionados, mas outros mantinham a certeza de isto ser uma doutrina perigosa.
O porta-voz deles levantou-se. “Fique claro, Paulo,” disse ele, “que não temos problemas contigo em qualquer ponto da Lei, e desejamos que tudo te corra bem no teu julgamento, mas esta tua doutrina não pode ser aceite na sinagoga….”
Foi interrompido pelos outros, uns a dizer que precisavam de ouvir mais provas antes de poderem decidir rejeitar ou aceitar, outros declarando zangados que já tinham ouvido quanto bastava, e que o que Paulo dizia era heresia. Ainda a argumentar, despediram-se dele, prometendo lembrá-lo nas suas orações..
Mas quando começaram a fazer fila de saída, Paulo deteve-os. “Eram palavras de verdade,” disse,”que o Espírito Santo pôs na boca do profeta Isaías:” “Ouvireis sem nunca entender. Vereis sem nunca perceber”… “Mas ficai certos disto: a salvação que o nosso Deus enviou, foi também enviada aos Gentios e eles hão-de ouvi-la.”
Os Judeus ficaram a olhar para ele desconfortavelmente por um momento. Depois, sem outra palavra deixaram a sala, e Paulo, ainda encadeado ao soldado, ficou a vê-los sair.
Dois anos passaram, e Paulo ainda esperava em Roma pelo seu julgamento. Tinha muitas visitas, tanto de Judeus como de Gentios, que vinham ouvir dos próprios lábios de Paulo a história do Senhor Jesus Cristo. Apesar de ser prisioneiro, era ainda sobre os ombros de Paulo que pesava o fardo de todas as igrejas.
Com Paulo a ditar, Lucas escreveu muitas cartas para as alegrar e fortalecer. Uma dessas cartas foi para o seu “amado filho” Timóteo.
“… Aceita a tua parte de sofrimento como um soldado leal do exército de Cristo, e o Senhor te dará o entendimento. Lembra, sempre como centro de tudo, Jesus Cristo, o homem nascido da linhagem de David e ressuscitado dos mortos para ser o nosso Salvador. Por pregar este evangelho estou encadeado como um criminoso, mas não podem encadear a Palavra de Deus e eu posso suportar todas as coisas por amor daqueles que Deus está a chamar. Por isso, meu querido filho, nunca te envergonhes do evangelho do Senhor, nem de mim, seu prisioneiro, mas agarra-te às coisas que de mim ouviste na fé e no amor. Porque nota isto, virão tempos difíceis. Encontrarás homens egoístas, amantes do dinheiro, orgulhosos, dissolutos e selvagens. Homens que gostam de guardar uma forma de religião sem terem nada a fazer com ela como uma força. Mas nunca abandones o que aprendeste, ainda que volte o tempo em que as pessoas não desejem ser ensinadas na verdadeira doutrina e procurem mestres que satisfaçam o seu modo de viver, seguindo as suas fantasias, preferindo mitos à verdade. Aconteça o que acontecer, faz o teu trabalho como um evangelista e um ministro, e aceita o sofrimento que há-de vir….Estás sempre nas minhas orações e eu anseio noite e dia ver-te de novo, mas o tempo da minha partida está perto. Tenho combatido o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé… Agora, somente Lucas está comigo.”
Paulo estava nos seus aposentos em Roma, agora encadeado pelo pulso a uma argola na parede, a olhar pela janela para a grande cidade de Roma, com as suas estátuas e nobres edifícios. Lucas sentava-se no chão junto dele, com as suas penas e rolos à volta, preparado para o caso de Paulo desejar enviar alguma outra carta de consolação e encorajamento a qualquer das igrejas.
Agora somente Lucas estava com ele…

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