sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

"Paulo de Tarso - JERUSALÉM" - Joy Harington (parte 9)

NONA PARTE. JERUSALÉM — Página: 119
(Tradução: Padre José Vicente Martins, SJ em 2013)

Paulo e Lucas chegam a Jerusalém para a festa do Pentecostes. 
Os Judeus agitam-se contra Paulo que é protegido pelo Comandante Romano, julgado pelo Sinédrio e enviado para Félix na Cesareia. Depois de dois anos Paulo apela para César.

DE TROADES, Paulo começou a longa viagem para Jerusalém. Sentindo necessidade de um dia de solidão, meteu-se a caminho a pé enquanto Lucas e os seus outros amigos viajavam de barco para Assos onde Paulo se juntava com eles. Passaram ao lado das ilhas de Mitilene, Chios e Samos, e uma vez que o barco tinha que esperar ao largo de Mileto para receber carga, Paulo tinha solicitado aos anciãos da Igreja de Éfeso para se encontrarem lá com ele, de maneira que pudesse fazer a despedida. Paulo e Lucas foram levados para terra num bote a remos, e desembarcaram no meio de uma cena atarefada, porque as pessoas da localidade estavam a carregar os seus botes com fardos e embrulhos para serem levados  ao barco que estava ancorado a alguma distância dali.
    À espera deles na praia para os saudar, estavam os irmãos de Éfeso. Depois das saudações, Paulo de costas para o mar, não fazendo caso da gritaria dos homens que carregavam os  botes, dirigiu a palavra aos seus amigos.
    “Meus irmãos,” disse, “eu vou a Jerusalém, e apesar de não saber o que lá me poderá acontecer, o Espírito Santo deu-me a conhecer claramente  que em qualquer cidade que visite, haverá problemas e perseguição. Não me preocupo nada com isso. Eu encaro a minha vida como não tendo  qualquer valor, comparada com a alegria de terminar a carreira que prossigo, que é completar a tarefa de que o Senhor Jesus me encarregou, de pregar a boa nova da graça de Deus. Mas sei que nenhum de vós voltará a ver-me de novo, e por isso, cuidai de vós e do vosso rebanho. Porque vós sois os pastores e eu sei bem que depois de eu ter ido, hão-de aparecer entre vós lobos raivosos. Sim, haverá no meio de vós mesmos quem queira perverter a verdade e encontrar discípulos que os sigam. Procurai portanto manter-vos vigilantes e lembrai-vos de como durante três anos eu próprio estive convosco dia e noite, a cuidar de vós e a avisar-vos, muitas vezes com lágrimas. Agora confio-vos a Deus, que na Sua graça vos pode fortalecer para tomardes o vosso lugar entre os Seus santos.”
    O pequeno grupo ajoelhou-se na praia, e quando Paulo impôs as suas mãos sobre eles a abençoá-los, lembrou uma última palavra de aviso.
   “Vós lembrais”, disse, “como estas minhas mãos sempre conseguiram o suficiente para as minhas necessidades e as dos meus companheiros. Tentei mostrar-vos que  temos o dever de trabalhar duramente, de maneira a podermos ajudar os necessitados, lembrando as palavras do Senhor Jesus que disse, ‘É melhor dar que receber’.”
    Então ajoelhou-se no meio deles na praia, rezando: “Ó Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e Pai de todos os homens em todo o lado. Fortalece os nossos corações, nós te pedimos, e enche-nos com a graça do Teu Espírito Santo, de forma que as nossas vidas estejam fundamentadas no amor que ultrapassa todo o entendimento. A Ti, oh Deus, Que pelo Teu poder dentro de nós tudo podes fazer, a Ti seja dada a glória na igreja, por Cristo Jesus.”
     Muitos choravam quando Paulo se levantou e abraçou a cada um deles.  Depois ele e Lucas voltaram para a beira-mar, onde o bote a remos os esperava. Entraram, o bote avançou, e uma vez mais embarcaram no barco que os havia de levar a Cesareia. Daí viajaram por terra a caminho de Jerusalém, para a festa do Pentecostes.
   Tinham passado vinte e três anos desde aquele outro dia de Pentecostes, quando a história dos actos dos apóstolos de Cristo começou. 
   Iam encontrar-se primeiro com Tiago “O Justo” que era agora o líder da igreja de Jerusalém. Ele recebeu-os com alegria e Paulo entregou-lhe o dinheiro que tinha angariado na Grécia e na Ásia para ajuda do trabalho da igreja. Depois apresentou-o a Lucas, que notou um certo embaraço na saudação de Tiago. Havia ainda um forte ressentimento entre alguns dos Judeus Cristãos, contrários à cordial aceitação dos Gentios por parte de Paulo.
    Depois de terem ficado na cidade durante sete dias, Paulo e quatro dos irmãos foram ao santuário do Templo para uma cerimónia particular. Tudo era familiar para Paulo: os pregadores no Pórtico de Salomão, os mendigos na Porta Preciosa, os grupos de alunos a ouvirem os Rabis; mas para Lucas era tudo novo, e enquanto esperava Paulo e os outros no Pátio dos Gentios, ouvia particularmente um Rabi, um homem de idade, delicado, de olhar vigoroso, que estava sentado com cerca de uma dúzia de jovens em círculo a seus pés, a ouvirem atentamente as palavras que ele lhes lia.
    “Quando chegar o dia da nova aliança, disse o Senhor, eu implantarei as minhas leis nas mentes dos homens, e inscrevê-las-ei nos seus corações. Serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Não haverá mais necessidade de um cidadão ensinar o seu semelhante, dizendo-lhe “Conhece o Senhor”, porque todos me conhecerão, do mais pequeno ao maior. E eu serei misericordioso para com eles e não mais lembrarei os seus pecados…” 
    Paulo tinha chegado do portão de acesso ao santuário, e enquanto estava ao lado de Lucas, a ouvir com ele o velho Rabi, parecia que os anos se escapavam e imaginou-se a si próprio como um dos arrebatados jovens da sua aula.
    O ancião tinha chegado ao fim da sua lição. Enrolou o pergaminho e despediu-se dos alunos, dizendo, “Meditai nestas palavras esta noite, meus filhos, e amanhã quando chegarem, discutiremos o que significam.”
    Os jovens começaram a levantar-se. O Rabi, deu-se conta da presença de Paulo e Lucas, e olhou para eles interrogativamente. Paulo aproximou-se.
    “Rabi Gamaliel,” disse ele, “Quanto gosto em ver que continua bem, passados tantos anos.” Depois, vendo que o ancião olhava admirado, continuou, “Lembra-se de um aluno seu, deve haver – oh, há vinte e três anos. Um jovem chamado Saulo de Tarso?”
    “Saulo de Tarso,” repetiu Gamaliel, olhando inquisitoriamente para Paulo. “Claro que sim… Aconteceu alguma perturbação, se bem me lembro. Onde tens estado todos estes anos, meu filho?”
    “A viajar.”
    “E agora estás de volta entre o teu povo. Quem é este?” perguntou, ao notar Lucas  subitamente.
    Quando Paulo lhe disse que era o seu amigo, Lucas, da Macedónia, o ancião ficou retraído por um instante a pensar que o seu antigo aluno estava na companhia de um Gentio. A sua saudação foi educada, mas fria.
    Voltou-se para Paulo com algum alívio, e fez mais perguntas sobre as suas viagens. Continuaram a falar, sem notarem que estavam a ser vistos de forma pouco amistosa por um grupo de homens ali perto. No centro do grupo, e obviamente entre eles a mais enfática personalidade, estava o comerciante de Icónio, vindo a Jerusalém como um dos peregrinos do Pentecostes, e com ele estava o padeiro Judeu de Lystra que tinha dado um aviso a Timóteo.
    “Aí está ele outra vez,” disse o comerciante. “Eu disse-te que havíamos de encontrá-lo aqui. E olha… tem um Gentio com ele. Não prova isso o que tenho vindo a dizer-te? Ele tem estado a profanar o santuário, levando Gregos lá dentro.” 
    “Ele não se importa nada com a Lei,” disse o padeiro, recordando o seu último encontro com Paulo.
    “Isso é verdade,” disse o comerciante. “É o que tenho estado a dizer-lhes. Por toda a Ásia tem andado a desviar Judeus da Lei de Moisés. Tivemos problemas com ele na Galáxia há anos. Fizemo-lo fugir da cidade, lá isso fizemos, da nossa cidade. Mas noutros lugares conseguiu arranjar um bom acompanhamento, conforme me dizem.”
    Um Judeu local, rígido na sua observância da lei Judaica, foi mais rigoroso a desaprovar, e disse. “Quem se importa com os seguidores que tem entre os Gentios?” “Que ele se perca na ignorância com eles! Mas profanar o Templo! Levar pagãos para a Casa do Senhor!” Com os braços erguidos acima da cabeça voltou-se para a multidão. “Filhos de Abraão, estais a  ouvir? A Casa de Deus está a ser profanada.”
    Um lamento se levantou a partir do ancião, e gritos de ira dos mais jovens. O comerciante estava muito satisfeito. Tinha-os revoltado contra Paulo, e agora lembrava-lhes que nem era preciso apontar-lhes o que tinham que fazer , porque sabiam bem que desrespeitar as leis do Templo podia ser punido com a morte.
    “Sim”, afirmou. “E morte para quem? Não para o estúpido pagão que o segue como ovelha para o santuário, mas para” – levantou a voz a gritar – “Paulo de Tarso!”
    A multidão agora, completamente enfurecida, assumiu o grito: “Morte para Paulo de Tarso. Morte para Paulo de Tarso!” Aproximavam-se dele cada vez mais, – os  devotos peregrinos da Festa de Pentecostes tinham-se convertido numa populaça desvairada.
    Demasiado tarde para os deter, um soldado Romano que tinha ouvido a gritaria desceu a correr as escadas que levam da Torre Antónia para o pátio. Olhou por um momento para a cena desordeira, e depois percebendo que sozinho nada podia fazer, subiu as escadas para dentro da torre à procura de reforço.
    No seu gabinete o Comandante, Cláudio Lysias, estava a ver dois ordenanças a polir o seu colete de peito e o elmo, quando um soldado entrou  à pressa a relatar que havia desordem lá em baixo, no pátio do Templo.
  “Que queres dizer com, desordem?” perguntou Cláudio Lysias.
   O soldado disse-lhe que uma quantidade de Judeus estava a querer atacar dois homens e que aquilo parecia  feio.
   “Oh, estes Judeus,” disse o Comandante. “Se não é no Pentecostes é na Páscoa, sempre uma desordem. Mas geralmente fazem-no fora do Santo Templo. E hoje estamos com falta de homens nas casernas – foram distribuídos por toda a cidade.”
    Voltou-se para os dois ordenanças, a dizer-lhes que teriam de ir eles. Ajudaram-no com o seu colete de peito e depois saíram à pressa com o outro soldado. Cláudio Lysias foi à porta e olhou para baixo das escadas das casernas. Viu os três soldados a tentarem passar  através da multidão e os guardas da Porta Preciosa a abrir caminho do outro lado do pátio. No centro da multidão barulhenta, estava Paulo, esbofeteado por todos os lados por gente furiosa, até que os soldados chegaram junto dele e se esforçaram por fazer recuar a população. Mas não eram capazes de controlar aquela multidão agitada.
    Cláudio Lysias percebeu que tinha que agir depressa. Desceu as escadas a correr, e gritou, “Para trás!”
    A multidão respeitou a voz da autoridade. Recuaram, e quando viram o Comandante, encaminharam-se para ele que marchava por entre eles para o centro da desordem. Com voz breve e militar perguntou a Paulo quem era ele, e o que é que estava a acontecer, mas antes de Paulo poder responder a multidão começou novamente a gritar.
   “Ele profanou o Templo!” “É um blasfemo!” “Pratica feitiçaria!” “Crucifica-o!” 
   “Tragam-no para as casernas,” ordenou Cláudio Lysias aos soldados. “É melhor transportá-lo.”
    Quatro soldados levantaram Paulo acima das cabeças, e o Comandante dirigiu o caminho de regresso às casernas. A multidão acompanhou-os, com mãos levantadas a ameaçar  Paulo e tornando difícil aos soldados avançar. Subiram por fim as escadas com dificuldade, e colocaram-no no topo; e aí Paulo pediu que o ouvissem.
   “Eu sou Judeu,” disse, “um homem de Tarso. Não fiz nada contra a Lei.”
   “Parece pensarem que fizeste,” disse o Comandante; e Paulo pediu para falar à multidão.
   “Falar-lhes?” repetiu Cláudio Lysias. “Não percebes que tentaram matar-te?”
    Mas Paulo insistiu, e o Comandante, curioso, disse que podia tentar.
    Paulo voltou-se para a multidão em baixo e levantou os braços.
   “Meus irmãos e pais,” disse, “ouvi o que tenho para dizer em minha defesa.”
    Era a forma Hebraica de iniciar um discurso e fez imediatamente que se calassem.


Cláudio Lysias resgata Paulo dos judeus no Templo



O Conselho do Senedrim
     
Paulo disse-lhes que era Judeu, como eles, nascido em Tarso da Cilícia, mas  educado em Jerusalém aos pés do mais honrado Rabi Gamaliel, e treinado na mais rigorosa observância da Lei Judaica, para manter o respeito de Deus. Lembrou-lhes que tinha sido ele que tinha perseguido os homens e mulheres que eram seguidores de Jesus de Nazaré, e que foi com a autorização do Sumo-sacerdote e do Conselho que se deslocou a Damasco para trazer os Nazarenos para Jerusalém, presos com cadeias.
   “Meus irmãos e Pais,” continuou “foi na estrada para Damasco que me aconteceu o que mudou a minha vida.” Fez uma pausa e a multidão esperou em silêncio. “Tinha quase chegado à cidade, de facto já podia ver as portas à minha frente, quando subitamente fui detido no caminho por uma luz ofuscante e abrasadora. Aterrado caí no chão e enquanto ali estava estendido, ouvi uma voz a chamar  pelo meu nome: “Saulo…Saulo;” ”e como ouvi e não me atrevi a falar, essa voz perguntou, “Porque é que me persegues?”Ainda a tremer de medo, olhei para a luz a perguntar quem é que falava e ouvi a resposta , “Eu sou Jesus de Nazaré a quem tu persegues.”
    Havia silêncio absoluto no pátio. A multidão estava calada, dominada pela história de Paulo.
   “Os meus companheiros correram ao meu encontro,” continuou. “Encontraram-me voltado para a luz com olhos sem poder ver. Tinha ficado cego pela glória daquela visão e como homem cego, Saulo o perseguidor, foi conduzido a Damasco. Não diríeis vós que foi a mão do Senhor que me tornou cego? Oiçam então o que aconteceu em Damasco, e vejam a mão do Senhor a trabalhar em mim. Um Judeu devoto, um reverente observador da lei, um homem altamente respeitado por todos os Judeus em Damasco, veio ter comigo quando estava deitado cego no meu alojamento e colocou as suas mãos sobre os meus olhos; e pelo poder do Senhor, a vista foi-me restituída. Este homem, Ananias, disse-me: “O Deus dos nossos pais escolheu-te para conheceres a Sua vontade, para veres o Messias, para ouvires palavras dos Seus próprios lábios, para poderes ser Sua testemunha diante de todos os homens. ”
    A multidão estava ainda a ouvir atentamente. Parecia que os tinha conquistado a todos. Tudo o que até agora tinha dito, tinha o selo da verdade para quem o ouvia. Encorajado, continuou.
   “Pouco depois disto voltei a Jerusalém de maneira a poder dar testemunho do Messias, aqui no próprio lugar onde tinha visto o seu primeiro mártir, Estêvão, apedrejado até à morte. Mas uma vez mais o Senhor interveio. Disse-me que deixasse esta cidade e…vou dizer-vos as próprias palavras do Senhor…” ‘Vai’, disse, ‘Porque te envio para longe, para levares o meu nome aos Gentios’.”
    Com estas últimas palavras, o frenesim apoderou-se novamente da multidão.
   “Fora com ele!” gritou um, e outros, “condenou-se pela própria boca!”, “Voltou-se para os Gentios!”, “É um traidor, devia morrer!”
    E a multidão, facilmente volúvel, primeiro murmurava e depois juntou-se ao intenso clamor: “Fora com ele… Morte ao traidor…”
    O pandemónio era agora pior do que antes. Cláudio Lysias ouvia com desespero. Ele não se tinha importado com o discurso de Paulo, nem com o explosivo comportamento daquela multidão Hebraica. Voltou-se furiosamente para Paulo, e disse-lhe com brevidade que tinha tido a sua oportunidade, e que muito o tinha ajudado. 
    Paulo ficou amargamente desapontado. “Não entendem…” murmurou; e Cláudio Lysias disse bruscamente que também ele não tinha entendido, e que o melhor era que Paulo lhe dissesse o que tinha feito.
   “Não fiz nada contra a Lei,” disse Paulo com firmeza, e com isso o Comandante ordenou aos soldados que o levassem para dentro.
   “Para ser flagelado, senhor?” Perguntou um dos soldados.
   “Sim. Temos que o fazer falar.”
    Dois dos soldados empurraram Paulo para dentro das casernas, enquanto o Comandante ordenava aos outros que desimpedissem o pátio. Viu a multidão a dispersar, depois foi para dentro do seu gabinete, onde estava Paulo entre os dois soldados, com as correntes a prenderem-lhe as mãos à frente. O casaco tinha-lhe sido tirado.
    “Porque está ele aqui?” perguntou Cláudio Lysias. “Eu pensei que lhes tinha dito para que o examinassem com o chicote.”
    “Sim, senhor,” disse um dos soldados. “Mas o prisioneiro diz que é cidadão Romano, Senhor. E é contra as ordens…”
    Cláudio Lysias ficou espantado. Perguntou a Paulo em tom severo se ele se dava conta que a pena por fazer uma falsa declaração de cidadania Romana era a morte, e Paulo respondeu que sim; mas continuava a insistir que era cidadão Romano.
    O Comandante olhou para ele fixamente e fez uma pergunta a testá-lo. “Quanto é que te custou?”  perguntou.
   “Nada,” disse Paulo. “Nasci cidadão.”
    Imediatamente os soldados tiveram ordem de o libertarem e de lhe tirarem as correntes  das mãos. O Comandante pediu desculpa pelo que tinha acontecido; mas continuou. “Eu não posso simplesmente deixar-te ir, sabes. Os Judeus estão a fazer queixas contra ti,e embora eu não me importe nada com o que eles são, tens que ter alguma espécie de julgamento ao menos para tua protecção.”
    Paulo replicou que podia responder a qualquer acusação que fizessem contra ele, ao que o Comandante respondeu que ia ordenar ao Conselho do Senedrim que reunisse, e que no dia seguinte poderia encará-los e defender-se. 

    Na Câmara do Conselho o Senedrim reuniu de manhã com a cerimónia habitual. Na cadeira do juiz estava sentado Ananias, o Sumo-sacerdote e a seguir a ele os representantes dos Saduceus. Do lado oposto estavam sentados os Fariseus, entre os quais o velho Gamaliel com os seus alunos, e no centro estava Paulo de pé, como Estêvão tinha estado no seu julgamento havia tantos anos. Somente o Sumo-sacerdote parecia uma figura pouco familiar, muito diferente do seu competente e douto predecessor. Ananias era um homem grosseiro, mundano, com uma reputação de violência, impopular tanto para os Judeus como para os Romanos.
    O Comandante sentou-se num estrado junto dos sacerdotes,  atento aos  Saduceus e Fariseus, que segredavam entre si, por terem sido apanhados desprevenidos pela ordem do tribunal. Ninguém sabia quais eram as acusações e havia uma boa dose de especulação entre eles.
    Foi Paulo, cansado de esperar, que iniciou os procedimentos.
   “Meus irmãos,” disse alto e claramente aos Fariseus. “Oiçam e eu vos direi o que querem saber. Toda a minha vida vivi perante  Deus com uma consciência limpa…”
    Imediatamente Ananias interrompeu furioso, “Batam-lhe na boca!”
    Um guarda avançou e deu uma bofetada na face de Paulo. Ele girou à volta e apontando para o Sumo-sacerdote gritou, “Deus te atingirá a ti, seu muro caiado de branco.  Estás aí sentado a pretender julgar-me segundo a Lei e contudo é contra a Lei que dás a ordem de me baterem?”
    Houve um murmúrio na corte, e o guarda do Templo ameaçou-o de mão levantada, a perguntar se ele se atrevia a insultar o Sumo-sacerdote de Deus.
   “Irmãos,” disse Paulo, agora mais calmo, “tinha-me esquecido que ele era o Sumo-sacerdote.”
    Ananias silenciou-o. À pressa, declarou que considerava Paulo réu de blasfémia, traição e feitiçaria. Gamaliel levantou-se imediatamente para protestar, dizendo que ele não podia ser declarado culpado, porque nem sequer lhe tinham dada a oportunidade de falar em própria defesa.
    “Ele não tem defesa,” declarou Ananias a finalizar. “Tenho ouvido testemunhas que juraram pela sua culpa. Peço que te controles, Rabi Gamaliel. Lembra-te da presença do Comandante. Ele pediu-me para ver justiça administrada segundo a nossa Lei. Não dêmos o espectáculo de divisão entre nós.”
    Fez sinal aos guardas para deterem o prisioneiro, mas Paulo apelou para os Fariseus, clamando que era um deles, e como eles vivia na esperança de uma vida depois da morte. Era por esta crença que estava a ser julgado.
    Alguns dos Fariseus levantaram-se. Era este o mais forte osso de desacordo entre eles e os Saduceus.
    Gamaliel falou por todos. “Não encontramos culpa neste homem. Quem sabe, talvez um espírito ou um anjo tenha falado com ele como afirma. Não vamos duvidar da palavra de um irmão. Que as vossas testemunhas provem que ele é mentiroso.”
    Olhando nervosamente para o Comandante, Ananias apelou ao silêncio na corte. “Pedimos pena de morte para Paulo de Tarso”, disse, mas os Fariseus exigiram em voz alta que Paulo pudesse falar. O Comandante tinha tido quanto bastava; apelou para ordem na corte, e quando houve silêncio anunciou que uma vez que a corte parecia indecisa relativamente às acusações contra Paulo, ia guardá-lo em custódia de protecção por alguns dias. Entretanto esperava que o Sumo-sacerdote havia de ter o cuidado de vigiar para que as cortes do Templo não fossem utilizadas para demonstrações violentas quanto a assuntos que tivessem que ver com a religião Judaica e a lei.
   Com isto desceu do estrado e fazendo um sinal a Paulo para o seguir, abandonou a corte.

   Numa cela das casernas Paulo estava sentado em profundo abatimento. Estava triste por aquilo que tinha acontecido na corte, e também preocupado quanto a Lucas, que se tinha  retirado sem ser molestado pela multidão, mas estaria ansiosamente à espera de notícias. Ele tinha julgado mais prudente não tentar contactá-lo, com receio de dirigir a atenção para ele, pondo-o também em risco.
    Os seus pensamentos tristes foram interrompidos pelo abrir da porta da cela. O seu guarda, com quem tinha bom relacionamento, entrou com um jovem.
   “Há alguém que o quer ver.”
    Paulo levantou-se e olhou para o rapaz com surpresa. O soldado, lembrando ao visitante que não podia ficar por muito tempo, deixou-os juntamente sós, com a porta aberta.
   “Quem és tu?” perguntou Paulo.
   “Saulo de Tarso.”
   “Saulo de Tarso?” repetiu Paulo com admiração.
   “Sim, sou teu sobrinho.”
   “O filho da minha irmã?”
    Saulo acenou que sim. Paulo abraçou o seu sobrinho, dominado pela emoção. Quando conseguiu falar, disse ao rapaz que a sua irmã era apenas uma criança quando ele deixou Tarso. E agora, vinha a saber por Saulo que o filho dela já tinha dezasseis anos, e que a família tinha vindo para Jerusalém onde Saulo estava a estudar com o Rabi Gamaliel.
    O rapaz continuava a olhar nervosamente para a porta, com o guarda do lado de fora à espera. Falou com urgência. “Ouve, eu vim para te avisar. Estão a combinar matar-te.”
    “Quem?” perguntou Paulo.
    “Alguns dos Saduceus. Fizeram um voto; falaram até com o Sumo-sacerdote sobre esse assunto.
    Paulo chamou a atenção para o facto de dificilmente o poderem atingir na prisão – numa fortaleza, guardada pelo exército Romano, mas o rapaz continuou ansiosamente em voz baixa.
    “Sim, eu sei, é aí onde entra a conspiração. O Sumo-sacerdote combinou pedir ao Comandante que te descessem para seres sujeito de novo a outro julgamento… algo ligado com outras provas… De qualquer modo estes homens planeiam estar à espera fora da corte, e assassinarem-te quando fores levado para baixo.”


  A praia de Mileto
    Paulo ficou em silêncio por um momento. Depois louvou Saulo por ser tão corajoso, pondo em risco a vida por ter vindo. Se eles soubessem o que ele tinha feito…O rapaz interrompeu a perguntar o que é que o seu tio tinha ideia de fazer.
    “Temos que avisar o Comandante,” disse Paulo, “para ele estar preparado. Podes ir ter com ele e dizer-lhe o que me disseste a mim? Eu penso que ele te vai receber. É um homem justo.”
    Foram interrompidos pelo soldado, que voltava para dizer que era tempo de o visitante  sair já, porque o tempo tinha acabado.
    “Oficial,” disse Paulo, “por favor leve este jovem a falar com o Comandante. Ele tem alguma coisa muito importante para lhe dizer – alguma coisa que tem que ver com a segurança de um cidadão Romano.”
    O soldado ficou bastante  embaraçado pelo pedido, e começou por dizer que não podia ser, mas depois abrandou, e prometeu ver o que se podia fazer. Ficou de pé, à espera de fechar a porta, enquanto Saulo voltava para uma última palavra com seu tio.
    “A mãe enviou este dinheiro,” disse ele, entregando uma bolsa de coiro que trazia no seu cinto. “É uma parte do que o avô deixou. Ela diz que és tu que o deves ter.”
    “Deus te abençoe, filho,” disse Paulo. O seu desalento tinha desaparecido, com a ameaça de novo risco, e ficou contente por ter encontrado o seu sobrinho – e um sobrinho que por ele tanto tinha arriscado.  Nem o som da porta a ser-lhe fechada outra vez, o tinha agora incomodado. “Talvez isto não seja o fim,” pensou. “Talvez, apesar de tudo, tenha que ir a Roma.

    Era ainda manhã cedo quando o soldado bateu à porta do Comandante, e foi mandado entrar. Saulo sentia-se agora muito atemorizado, mas entrou e ficou aprumado diante do Comandante, enquanto o soldado explicava que ele era um parente do prisioneiro com alguma coisa urgente a dizer.
    O Comandante estava interessado, e preparado para ouvir tudo o que pudesse lançar alguma luz sobre o mistério do seu prisioneiro. Viu, contudo, que o rapaz estava nervoso por falar à frente do soldado, e por isso levou-o para o lado mais afastado da sala, fora de ouvidos indiscretos, e disse-lhe para falar.
    Com pressa nervosa, Saulo contou a história da conspiração para matar o seu tio. “Se ele deixar estas casernas não chega à sala da corte vivo, senhor. No encontro da noite passada, mais de quarenta Judeus se comprometeram por juramento a não comer nem beber até o terem matado. Estão colocados à volta de toda a cidade, senhor.”
    “Que é que o teu tio fez,” perguntou Cláudio Lysias, “para que sacerdotes se tornassem assassinos?” e quando o rapaz disse defensivamente que seu tio não tinha feito nada contra a Lei, o Comandante suspirou. Não estava mais perto do segredo do mistério, mas pelo menos havia agora um motivo para agir e levar o assunto a uma autoridade superior.
    Disse a Saulo que fosse para casa, e que tivesse cuidado em não falar a ninguém sobre este assunto. Depois despediu-se dele, e o rapaz partiu para o sol da manhã, enquanto no seu gabinete o Comandante dava ordens para um grupo de setenta homens a cavalo e duzentos tropas armados estarem pelas nove horas dessa noite, com um cavalo para o prisioneiro Paulo de Tarso, preparados para o levarem até Cesareia,
    Depois Cláudio Lysias pegou numa pena e tinta e começou a escrever uma carta.            
      
    Naquela noite Paulo foi tirado da sua cela e desceu as escadas das casernas. Aí na escuridão viu um grande ajuntamento de homens armados e cavalos. Foi montado num cavalo, e a caravana pôs-se a caminho com ele no meio.
    Eram vistos por um homem solitário: Lucas, não pôde descansar até saber o que tinha acontecido a Paulo, e todo o dia tinha mantido a vigilância sem ser visto, fora da fortaleza onde estavam as casernas. Quando viu a caravana a andar, encontrou um cavalo e   partiu a correr a todo o galope até apanhar a caravana de homens armados, para os acompanhar até Cesareia.
    Em Cesareia Paulo foi posto sob guarda, enquanto um mensageiro levou a carta de Cláudio Lysias à casa do Governador. Félix era um homem de idade e cauteloso, mas um bom Governador. Ordenou ao escrivão que lesse a carta, e ficou informado que tinha que julgar um prisioneiro enviado de Jerusalém.
   “Este homem,” leu o escrivão, “foi apanhado pelos Judeus e estava na iminência de ser morto por eles quando cheguei com as minhas tropas e o resgatei, tendo ficado a saber que era um cidadão Romano. Descobri que estava a ser acusado acerca de uma questão
ou questões da sua Lei, mas não havia nenhuma acusação contra ele que merecesse morte ou prisão. Agora, porém, recebi informação privada de uma conspiração contra a vida dele e por isso o enviei sem dilação. Notificarei os seus acusadores que se quiserem insistir nas acusações, devem ir a Cesareia a fazê-lo na vossa presença.”
    O Governador perguntou onde estava este homem, e quando foi informado que o prisioneiro ficara sob a guarda do palácio de Herodes, disse imediatamente, “Bem, tratem de ver que seja bem tratado. É um cidadão Romano. Que espécie de homem é ele? Rico?”
   “Está bastante mal vestido, senhor,” disse-lhe o Centurião que lhe tinha levado a carta, mas parece ter muito dinheiro com ele.
   “Amigos?” perguntou o Governador.
   “Há um Grego com ele, senhor, um doutor, chamado Lucas.
   “Bem, deixem que ele tenha acesso livre ao prisioneiro. “Como é que se chama?”
   “Os Judeus chamam-lhe Saulo, senhor, mas parece-me que ele prefere ser tratado como Paulo.”
    O Governador sorriu, e comentou que ele estava obviamente orgulhoso da cidadania Romana. Perguntou de onde era ele e foi informado que era de Tarso, da sua própria província.
  “Tratarei do caso quando os acusadores chegarem de Jerusalém,” disse.

   Cinco dias mais tarde, Paulo foi levado à corte para aparecer diante do Governador Félix. O Sumo-sacerdote tinha chegado de Jerusalém trazendo consigo um hábil advogado, Tertulo, para propor o caso do processo.
   Paulo sentou-se acorrentado, confortado por saber que Lucas estava perto dele na corte quando Tertulo se levantou para abrir o processo.
  “Excelência,” disse Tertulo suavemente, “é devido ao vosso justo governo que podemos gozar de uma paz nunca perturbada, e devido ao vosso sábio cuidado que o estado desta nação tem progredido todos os dias. Tudo isto reconhecemos com a mais profunda gratidão. Não tenho vontade de incomodar Vª Excelência com um longo discurso, mas peço-lhe que me oiça por um pouco com a vossa habitual cortesia.
   “O simples facto é que encontrámos que este homem, Saulo ou Paulo de Tarso, é  uma
peste absoluta, provocando sedições e pondo em risco a paz entre os Judeus por todo o mundo. Ele é o líder de uma seita chamada “Os Nazarenos,” e estava de facto a violar o Templo quando o prendemos. Nós tê-lo-íamos julgado conforme a nossa lei, mas o Comandante Cláudio tirou-o das nossas mãos com grande violência, e insistiu que o caso devia ser tratado diante de Vª Excelência. Da nossa parte lamentamos que Vª Excelência tenha que ser incomodado com este assunto, mas se desejar interrogar o prisioneiro, descobrirá por si próprio a verdade das acusações que trazemos contra ele.”
    Tertulo sentou-se, e houve um murmúrio de aprovação da parte dos sacerdotes. O Governador consultou o seu escrivão, e leu as notas que tinha tomado. Com voz fraca Félix perguntou que é que a prossecução queria dizer por “Nazarenos”, e foi-lhe dito que eram os seguidores de um Judeu chamado Jesus de Nazaré crucificado alguns anos antes.
    “Oh, esse cavalheiro, sim,” disse o Governador. “Ouvi falar dele.” E então com voz mais elevada disse, “Chamem o prisioneiro.”
    O escrivão assim fez, e Paulo levantou-se, descobrindo logo com o olhar os olhos de  Lucas antes de se voltar para o Governador, e  falar. Disse que não tinha receio de expor o seu caso, uma vez que o Governador estava bem familiarizado com a Lei Judaica. Doze dias antes tinha ido a Jerusalém para a Festa de Pentecostes. Nunca tinha discutido com ninguém no Templo, nem tinha juntado uma multidão quer fosse nas sinagogas ou qualquer outro lugar da cidade, nem a prossecução poderia apresentar prova de qualquer das acusações que traziam contra ele.
    “E quanto a essa seita, os Nazarenos?” perguntou o Governador.
    “Chamam-lhe seita. Nós chamamos-lhe um Caminho,” afirmou Paulo. “O caminho de adorar o Deus de nossos pais pela fé no Seu Messias. Chamam a isto de heresia. Não é heresia, porque ponho a confiança em tudo o que está escrito na Lei dos profetas. Partilho com eles a esperança na vida que há-de vir. Com esta esperança que tenho, faço o possível para viver a minha vida com uma consciência limpa diante Deus e dos homens.”
    O Governador disse-lhe para relatar à corte o que tinha acontecido em Jerusalém; e Paulo explicou-lhe que depois de uma ausência de alguns anos tinha ido lá levar dinheiro que tinha sido colectado para os pobres da sua nação, e para participar nalgumas cerimónias no Templo. Nestas cerimónias, nem é preciso dizê-lo, o seu amigo Lucas, um Gentio, tinha ficado fora no pátio. Foi quando Paulo saiu para se juntar com ele que a perturbação começou. Alguns Judeus da Ásia tinham incitado a multidão para o atacarem.
    “Esses são os homens que hoje deviam estar diante de vós,” disse Paulo. “Noto que não estão cá. Mas está aqui o Sumo-sacerdote; portanto ele devia ser chamado para vos dizer se me tinham encontrado culpado de qualquer crime, quando estive diante do Conselho de Senedrim.”
    Houve silêncio na corte por um momento, até Félix perguntar se o Senhor Sumo-sacerdote tinha alguma coisa a acrescentar a este testemunho.Tertulo olhou para Ananias a pedir instruções, mas Ananias acenou com a cabeça a dizer que não.
   “Nada a acrescentar às acusações já feitas, Excelência,” disse Tertulo, ao que Félix respondeu que não podia declarar o prisioneiro culpado com os testemunhos disponíveis. O Comandante Lysias seria instruído para fazer outras investigações em Jerusalém. Entretanto Paulo seria guardado em custódia preventiva, mas os seus amigos poderiam visitá-lo e ele teria uma liberdade considerável.
    Levantou-se e dissolveu a corte.

    Durante dois anos não apareceram mais provas de Jerusalém tanto a favor de Paulo como contra ele. Entretanto tinha sido nomeado em Jerusalém um novo Sumo-sacerdote e um novo Governador Festo, em Cesareia.
    Festo, um homem mais novo que o seu predecessor, entretinha-se com  o jovem Rei Herodes Agripa II. O último e provavelmente o melhor da sua linha, estava ainda bem relacionado com Roma, e tinha a aparência e o comportamento de um jovem Romano. Com ele estava a sua irmã Berenice – uma jovem, alegre e espirituosa mulher, que tinha estado duas vezes casada, mas agora vivia com o seu irmão a quem era muito dedicada. Apesar de ser uma mulher mundana, entrava em estados extremos de fervor religioso. 
    No gabinete de Festo os dois jovens bebiam vinho com ele, e Agripa perguntou ao Governador como avaliava o seu novo ofício.
   “Razoavelmente bem,” foi a resposta de Festo.
    Falavam de Jerusalém e de Cláudio Lysias, que Festo considerava ser um homem bom.
   “Eu libertei-me do Sumo-sacerdote Ananias,” disse Agripa. “O novo que nomeei, Ismael, penso que tem mais ideia da justiça.”
   “Pode ser que sim,” disse Festo, duvidosamente. “Eu não conheci o último. Confesso que quando se entra nas intolerâncias da Lei Judaica e seus costumes, me encontro baralhado.”
    Agripa riu-se. Tem que se ser treinado para isso desde a meninice, disse, como ele tinha sido – apesar de em muitos aspectos, acrescentou, se sentir mais Romano que Judeu.
   “Não digas isso. Não o digas,” suplicou Berenice. “Vais atrair a ira de Deus sobre ti.”
    O seu irmão riu novamente. “A minha irmã é a religiosa da família,” disse, “Ou deveria dizer a supersticiosa? O teu interesse em coisas espirituais vem e vai, eh, Berenice?”
   “E porque não?” retorquiu ela. “Há um tempo para tudo, como dizem as Escrituras.”
   “Eu tenho neste momento entre mãos um mistério sem solução,” disse Festo, “que suponho poderia ser encarado como um assunto de religião.” E falou-lhes das suas suspeitas acerca de Paulo, um Judeu que agora tinha já dois anos de custódia. Tinha-lhe oferecido a oportunidade de voltar a Jerusalém para ali ser julgado de novo, mas agora tinha apelado para César.
    “Então é a César que deve ir,” disse Agripa, enquanto Berenice, intrigada, perguntou o que é que Paulo tinha feito.
    Festo disse que era difícil para ele ajuizar agora uma coisa ou outra, mas que tudo tinha a ver com as crenças da religião Judaica. Paulo tinha sido acusado de ser Cristão. “Sabeis o que isto quer dizer?” perguntou Festo, e quando Agripa disse que não, ele explicou: “Bem, tanto quanto posso perceber é alguma coisa relacionada com um homem chamado Jesus que morreu, e que Paulo afirma que está ainda vivo.”
    Berenice inclinou-se para a frente com ansiedade. “Jesus? Mas eu conheço esse nome.”
   “Um nome muito comum, minha querida,” disse Agripa.
   “Não…Não te lembras, Agripa, quando éramos crianças,” disse Berenice. “Durante a fome quando estávamos com o pai em Jerusalém?... Eu nunca me esqueci. Aqueles homens fora do palácio que andavam a dar alimento às pessoas e a curar os doentes. Eles continuavam a dizer o nome “Jesus”…”De Nazaré,” não era?
   “Jesus de Nazaré – o homem Messias. Sim, claro que me lembro,” disse o irmão dela.
   “É uma grande sorte para mim estardes aqui, se me puderdes esclarecer por completo o   assunto,” disse Festo.
   “Eu não tinha ideia que houvesse ainda membros da seita de “Jesus” no país,” disse Agripa. “Ora, há anos que está a andar. E é muito estranho, sabem, que eu me viesse a cruzar com isso. A minha família tem tido confrontos com Jesus ao longo de três gerações. Eu serei a quarta! O meu bisavô, Herodes o Magno, como sabeis, era Rei da Judeia quando meteu na cabeça que uma criança nascida em Belém se ia tornar “Rei dos Judeus.” Não sei porque pensou tal coisa.
    Berenice interrompeu-o. “Oh sim, o pai contou-nos a história. Alguns astrónomos ou homens sábios de alguma espécie, disseram que tinham visto um sinal nas estrelas.”
   “É isso,” disse Agripa. “Ele era supersticioso, já vêem, como aqui a Berenice! E mandou que todas as crianças masculinas nascidas na região fossem mortas.”
   “Que drástico,” disse Festo, e Agripa concordou, acrescentando que o seu bisavô era um tirano.
   “Mas o menino Jesus escapou,” disse Berenice. “Precisamente como Moisés no meio dos juncos. Penso que os seus pais O esconderam.”
    Agripa fez notar que não podiam estar certos de se tratar do mesmo Jesus, mas que  de qualquer maneira o Herodes seguinte a ouvir falar de Jesus foi o tio Antipas, cerca de trinta anos mais tarde. Tinha andado um homem pela Judeia a pregar que Jesus era o Messias. Antipas considerou este homem como um rival rei dos Judeus, e mandou cortar-lhe a cabeça.Depois disso, Antipas foi quem teve o encargo de julgar o Próprio Jesus.
   “De verdade?” disse Festo. “Então Jesus era um agitador?
   “Bem, assim disseram,” concordou Agripa. “Muitas vezes tenho duvidado disso, sabendo como os Sumos-sacerdotes gostam de fabricar acusações. Bem, tu mesmo já tens passado por isso algumas vezes. De qualquer maneira, ele foi acusado pelo Senedrim da mesma forma que este homem de que nos falaste, e apresentado ao Governador para ser julgado.”
    Quem era então o Governador?” perguntou Festo.
   “Oh, quem era ele?” Agripa procurou lembrar-se. “O pai disse-me – Pilatos?”
   “Pôncio Pilatos?” sugeriu Festo.
   “Sim, penso que o nome era esse. Como tu, ele teve dificuldade em entender as acusações feitas pelos sacerdotes, e assim enviou Jesus ao meu tio a ver se ele podia ajudar. O meu tio teve a impressão de que Ele era apenas um lunático inofensivo.”
   “Mas o que é deveras fascinante,” disse Berenice, com a voz a ganhar entusiasmo, “é que o vosso prisioneiro diga que Jesus ainda está vivo. É por isso que penso que há alguma coisa mágica a respeito dele.”
   “Então Jesus morreu? Mesmo apesar de o teu tio O ter julgado inofensivo?” perguntou Festo.
   “Oh sim,” disse Agripa. “O meu tio enviou-O de volta a Pilatos que O mandou crucificar.” 
   “Mas porque é que as pessoas haviam ainda de estar a falar dele e a arriscar serem  também presas por isso”, insistiu Berenice. “Eu penso que é tudo muito curioso. Vamos ouvir este homem e tentar encontrar alguma coisa mais.”
    Agripa concordou que seria interessante ver Paulo e ouvir o que tem a dizer.
   “Trataremos disso,” disse Festo, satisfeito por agradar aos seus convidados reais. “Vou tratar de tudo para amanhã.”
 

Paulo, prisioneiro, levado para Roma



  Viajando para o porto de Mira
        
 

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