domingo, 18 de dezembro de 2022

"Paulo de Tarso - DE SAULO A PAULO" - Joy Harington (parte 5)

QUINTA PARTE. DE SAULO a PAULO — Página: 67
(Tradução: Padre José Vicente Martins, SJ em 2013)

Os primeiros chamados “Cristãos” em Antioquia. Barnabé, Saulo e Marcos embarcam para Chipre. O Procônsul converte-se. Saulo torna-se Paulo. Paulo e Barnabé viajam pela Galáxia. Marcos abandona-os. Rejeitado pelos Judeus, voltam-se para os gentios.


ANTIOQUIA da Síria era a maior e mais rica cidade do Este, a terceira maior cidade do Império Romano, alinhando a seguir em importância com Roma e Alexandria. As ruas colunadas tinham pavimento de mármore. Havia hipódromos, teatros, banhos, fontes e templos de todos os deuses debaixo do sol, nesta sofisticada cidade cosmopolita onde a cultura da Grécia, a civilização de Roma, o mistério e a sabedoria de Este andavam misturados.
Nas praças do mercado, oficiais Romanos, artistas Gregos, comerciantes Judeus, malabaristas, mendigos, dançarinos, citadinos com as suas túnicas longas de seda, camponeses das aldeias próximas com as suas curtas túnicas toscas e botas altas de cabedal, homens livres e escravos de todas as raças e cores andavam a tratar dos seus negócios ou estavam por ali de pé a conversar.
Dois jovens, estudantes como pareciam, iam conversando animadamente enquanto passeavam pelo meio desta atarefada e viva multidão. Naquela altura um deles parou, pegando no braço do seu companheiro.
“Olha,” disse ele. “Vê aquele alto rapaz preto. Andava comigo na universidade.”
O seu amigo reparou num Africano alto e forte, que estava de pé com um grupo de homens no outro lado da rua.
“Chama-se Simeão Níger. Por Zeus, como está mudado.”
“De que maneira?”
“Bem, costumava ser um moço tão sério e rigoroso. Um grande estudante da religião e da lei Hebraica, sempre a ler e a jejuar a imitar os Judeus –.” O jovem ficou embaraçado, e depois voltou-se para o seu amigo com um sorriso. “– Desculpa, Silas, mas tu sabes o que se passa com os convertidos à tua fé. Tornam-se mais Judaicos que os próprios Judeus.” O jovem Judeu sorriu. “De qualquer modo, o pobre do velho Simeão costumava apresentar-se como se carregasse aos ombros todas as preocupações do mundo. Bem, olha para ele agora.”
Olharam novamente para o outro lado da rua. O Africano ria com os seus amigos, e muitos dos que por ali passavam, voltavam-se para olhar para aquele extraordinário grupo de homens felizes.
“Eu posso dizer-te alguma coisa a respeito deles.” O tom do seu amigo era tão sério que Tito olhou para ele surpreendido.
“Podes?”
“Sim. São uma nova seita que começou na sinagoga. Adoram “O Cristo.”
“Que é isso? Um novo deus? Nunca mais acabarão os milagres, se os Judeus tiverem encontrado um novo deus!” Depois, como o seu amigo não fez nenhum comentário, perguntou: “Como é que eles se chamam, nessa seita?”
“A irmandade.”
Tito sentiu a sua curiosidade aumentar. “E que é que este novo deus, este – “Cristo”– faz por eles?” perguntou.
“Eu não sei. Mas são um grupo muito feliz. Ouvi dizer que descobriram novas formas de curar os doentes. Não penso que isso queira dizer alguma coisa. Mas fazem muito bem no meio dos pobres.”
“Curar os doentes, eh? Devo dizer que isso me interessa. Vamos falar com eles.”
Tito ia mesmo a atravessar a rua quando Silas o segurou pelo ombro.
Espera um pouco, há mais três homens que se juntaram com eles. Viajantes como parecem.”
Simeão saudou o seu amigo Barnabé com um grito de alegria. Os outros viajantes, um operário de tendas que levava a ferramenta, e um jovem que parecia ser uma espécie de secretário do grupo, porque levava rolos de papel e escovas, a quem antes não tinha ainda encontrado. Barnabé apresentou-os como Saulo de Tarso e João Marcos de Jerusalém. Simeão abraçou afectuosamente os estrangeiros e apresentou-os aos seus amigos líderes da fraternidade de Antioquia, Lúcio de Cirene e Manaen dos herodeanos. Os olhos de Saulo brilhavam em transporte de exaltação. Parecia um homem que estivesse a voltar a casa, depois de um exílio prolongado. Somente o jovem Marcos estava um pouco à parte; admirado e confuso com a estranha atmosfera não-Hebraica da cidade e com aqueles moços da irmandade.
Depois das saudações Simeão devolveu o seu sorriso radiante ao amigo:
“Que notícias correm em Jerusalém, Barnabé?”
“Más notícias, sinto muito.” O sorriso de Simeão esbateu-se. “Mas tem coragem, irmão, há muito trabalho aqui para fazer. Onde podemos ir conversar?”
“Venham ao meu alojamento,” disse o Africano, pondo um braço à volta do ombro do seu amigo e conduzindo-o estrada abaixo.
“Simeão?”
Simeão voltou-se e viu um jovem a correr ao seu encontro. A sua cara iluminou-se com gratidão e levantou os braços.
“Tito!” O jovem correu para o seu abraço. “É bom ver-te. Como estás tu, rapaz?”
“Eu estou bem,” disse Tito a arfar, “e tu também, quanto aparentas. Diz-me, é verdade que serves um novo deus estrangeiro?”
“O quê!” O Africano riu à gargalhada. “Tu conheces-me melhor do que isso. Eu deixo os deuses estrangeiros para vós homens da Grécia e de Roma!”
Eu ouvi dizer que eras um… um… “Cristo Homem.”
“Cristo Homem?” É a primeira vez que oiço esse nome!” disse a rir Simeão, e depois ao notar o olhar inquisitivo dos olhos do outro que estava a zombar do seu próprio tom, falou mais seriamente:
“ Mas eu sei a que é que te referes. Queres saber mais do Cristo que servimos?”
“Sim. Quero.”
“Então, vem a um dos nossos encontros.”
“Onde?.”
“Na minha loja, na mesma antiga na Rua Signon.”
“Quando?”
Simeão riu-se delicadamente com a impaciência do rapaz.
“Em qualquer tarde. Serás muito bem-vindo.”
“Podes contar comigo.”
Simeão apertou-lhe a mão e conduziu os seus hóspedes estrada abaixo na direcção do seu alojamento. Silas juntou-se a Tito onde estava à espera” deles.
“O que é que ele disse?”
“Convidou-me para um dos seus encontros. E eu vou.”
Silas riu-se. Era a sua vez de gracejar com o seu amigo.
“Tu ainda vais tornar-te um Homem de Cristo, Tito. Mas tens que corrigir os teus modos se o fizeres.”
“Porquê?”
“Bom, por todo o seu bom humor, oiço dizer que são contra uma quantidade de coisas que se passam nesta cidade. Não te esqueças que é uma seita Judaica.”
Tito respondeu-lhe com uma gargalhada. “Nós também temos a nossa religião, bem sabes.”
“Talvez”, disse Silas, determinado a ter a última palavra. “Mas é frequentemente em nome da religião que se cometem as piores infâmias.”
“Tu és tão mau como o meu tutor,” respondeu Tito a rir. “ Ele estava a dizer há apenas alguns dias que – “A Religião nesta cidade, hoje em dia…”, imitava a voz de um homem idoso, “…consiste em perverter-se com um milhar de infâmias e despojar-se dos últimos sinais de virtude.”
Silas riu-se enquanto Tito continuou no seu normal tom de voz.
“Seria melhor tu vires também, Silas, e acompanhares-me com o teu rigoroso olhar Hebraico. Quem sabe, talvez os dois venhamos a tornar-nos “ homens de Cristo.”
Tito e Silas eram apenas dois dos milhares de Judeus e Gentios que aderiram à irmandade de Cristo em Antioquia. O nome “Homens de Cristo”, tornou-se amplamente adoptado, e muito depressa foi abreviado, de maneira que os irmãos de Antioquia eram reconhecidos por aqueles que estavam fora da Igreja, como “Cristãos.”
Saulo trabalhava duramente no seu negócio de fazer tendas, e quando trabalhava no seu tear ou com agulhas e linha, falava com aqueles que vinham à oficina, clientes, camponeses, homens letrados, mendigos, comerciantes, estudantes, peregrinos – falava com eles sem parar do amor de Deus, da irmandade do homem, e da nova vida que lhes tinha sido dada por Cristo Ressuscitado. Dia após dia, depois do trabalho, pregava nas ruas e nas praças do mercado, e cada dia trazia novos crentes para a irmandade devido ao seu zelo e ao seu dom da palavra.
Para Barnabé era um nunca acabar fonte de admiração e alegria ver o mesmo fervor e zelo religioso que tinha inflamado Saulo o perseguidor, a inflamar agora Saulo o apóstolo de Cristo. Desejava que pudessem viajar ainda até mais longe, “A todo o mundo” como o Mestre lhes tinha dito, e fazer com que a chama da fé e amor fosse uma tocha a levar luz a todo o lado. Rezava para que essa oportunidade pudesse chegar. A sua oração teve resposta e um dia ele, Saulo e Marcos, despediram-se dos “Cristãos” de Antioquia e foram ao porto de Selêucia para embarcarem para Chipre.

Pafos na costa noroeste de Chipre era a sede do Governador Romano da ilha. A sua vila estava perto do belo Templo de Vénus entre laranjeiras e limoeiros que cresciam com abundância nesta parte da ilha. Sérgio Paulo era um homem inteligente e, como tantos dos seus companheiros cujo dever os levou para Este, encontrou-se insatisfeito com os deuses de seus pais e profundamente interessado na religião dos Judeus. Naquele dia estava sentado no seu terraço, a ouvir com impaciência a cantilena de um feiticeiro profissional que proclamava ter poderes divinos e o dom da profecia. Olhou para aquele homem a desenhar na areia os sinais do Zodíaco, e desafiou-o depois com irritação: “Bem, que novidade tens para me dizer, Elymas?” O feiticeiro terminou a cantilena e em voz alta de sing-song, proclamou as suas “profecias”: “Digníssimo Pró cônsul, sob o signo de Vénus, serás amado. Em nome de Artemis, a tua esposa será fecunda, pelo sinal de Marte, vencerás os teus inimigos…” Sérgio interrompeu-o bruscamente: “Já ouvi tudo isso antes, e o que é que isso quer dizer? Em nome de Vénus e Artemis e Marte? Que há de mágico nesses nomes? Não tens novas magias a mostrar-me?” “Qualquer magia dada pelo sol, que o meu mestre deseje.” “Sérgio inclinou-se para a frente a olhar para a cara do homem: “Podes curar os doentes? Podes expulsar demónios? Podes ressuscitar os mortos? Não, não podes. Mas há quem possa.” Chamou o seu criado: “Aqueles três Judeus estão ainda aí?” “Estão à espera, senhor.” "Trazei-mos cá.” O servo saiu. “Agora vais poder ver e ouvir alguns milagres, Elymas.” “Não admira que eu não conheça isso, senhor,” protestou o feiticeiro. “Eu estudei os segredos das estrelas. Olhei para o futuro e para o passado. Sei os segredos do Altíssimo.” As suas palavras não foram ouvidas. Sérgio Paulo tinha-se levantado para saudar três estrangeiros viajantes sujos que foram acompanhados com alguma cerimónia ao terraço. O Pró-consul estendeu a mão ao mais alto dos três, que parecia ser o seu líder. “Qual é o teu nome?” “José Barnabé senhor, nativo desta ilha.” E voltou-se para apresentar os outros: “Meu sobrinho, João Marcos de Jerusalém, e o meu amigo Saulo de Tarso.” Para surpresa de Marcos, Saulo avançou para saudar o próprio Pró-consul. Ficou mais surpreendido pelo que disse. “De Tarso, mas cidadão Romano, senhor.” Sérgio olhou para ele com interesse. “Na verdade, como é isso?” “Os meus familiares eram fabricantes de tendas, senhor. Ao meu pai foi-lhe concedida cidadania Romana como recompensa pelo seu trabalho no exército Romano.” “Entendo.” O Pró-consul estendeu-lhe a mão, e quando Saulo pegou no antebraço à moda Romana, disse com um sorriso, “Não Saulo, mas Paulo de Tarso, eh?” Marcos sentiu uma pontada de desagrado quando o Pró cônsul convidou “Paulo” a sentar-se junto dele enquanto Barnabé ficava de pé. Olhou para seu tio, mas o rosto dele não demonstrava nem surpresa nem inveja. Sérgio Paulo estava a falar. “Diz-me,” pediu, “que novo ensinamento é esse que trouxeste aos Judeus de Chipre? Há uma vida nova entre eles, um novo espírito. Ainda venerais o mesmo Deus?” “O único Deus verdadeiro.” “Um verdadeiro Deus,” repetiu Sérgio. “Quem me dera poder acreditar nisso.” Imediatamente Elymas se intrometeu no meio deles. “Um Deus todo-poderoso de verdade. Um Deus que escreve nas estrelas para os seus escolhidos profetas lerem, que dá aos seus eleitos o dom da profecia, que beneficia os seus profetas com poderes misteriosos de convocar os nomes dos seus santos para fazerem milagres…” “Estás enganado.” Foi o estrangeiro, “Paulo,” que o interrompeu. “Há um só nome debaixo do Céu. O nome de Jesus, o Cristo.” “O Cristo?” repetiu Sérgio, perplexo. “Que é que isso significa?” Com um grito o feiticeiro apontou um dedo acusador a Paulo. “Este Judeu é um blasfemo. Queria converter um homem em Deus.” Ninguém lhe deu atenção. Paulo continuou a falar tranquilamente com o seu hospedeiro. “O Cristo é o Messias. O Único Santo escolhido por Deus. Foi através dele que este novo, este Espírito Santo veio ao mundo.” “Onde está ele?” “Sim, onde está ele?” perguntou Elymas procurando enlear Paulo. Podes mostrá-lo a nós? É homem ou espírito? E se é espírito, é bom ou mau? Mostra ao Pró cônsul os teus truques, Paulo de Tarso, chama o teu Cristo. Convoca-o para diante de nós se podes.” Uma vez mais Paulo não deu atenção. “Disseste, senhor, que desejavas poder acreditar no único Deus todo-poderoso. Cristo é a expressão visível do único Deus todo-poderoso pelo qual tudo foi feito, espiritual e material, visível ou invisível. Tu és um homem com autoridade. Entende, então, que foi por Ele e para Ele, o Senhor e Criador da vida, que o poder, a propriedade e a autoridade foram criadas.” “Por Ele ou pelo Imperador?” “O Imperador é um servo do Deus Vivo. A Ele que nos criou a nós e ao mundo em que vivemos, a Ele é que deve pertencer o poder e a glória.” “Louco!” O feiticeiro estava mesmo atrás de Paulo e sibilou-lhe a palavra no ouvido. “Como te atreves a falar desse modo perante o Pró cônsul. És tão ignorante que nem sabes que adorar o Imperador é a lei de Roma.” A sua voz elevou-se de novo a um grito. “Tu dizes-te cidadão Romano, no entanto atreves-te a insultar o Imperador na pessoa do seu próprio oficial?” “Cala-te!” Ele arrastou-se como um cão ao ouvir o tom duro do seu mestre, que olhava para Paulo com interesse crescente. “Tu não respondeste à minha pergunta. Perguntei-te onde está esse Cristo a quem chamas a expressão viva do vosso Deus invisível? “Ele vive em nós, Seus mensageiros.” Sérgio enrugou a testa. “Não entendo isso.” O cão chicoteado arrastou-se de volta aos pés do seu mestre. “Se vossa graciosíssima Excelência me permitir falar, eu faria uma pergunta a este…renegado Romano…este blasfemo Judeu, que tão manhosamente foge às perguntas de vossa Excelência.” “Muito bem.” Elymas sorriu e tomou o lugar ao lado do Pró-consul. Dirigiu-se ao seu rival com suavidade como um advogado que em tribunal tenta atrapalhar uma testemunha. “Poderás dizer a sua Excelência o que aconteceu sob a lei Romana a esse Jesus que chamais Cristo?” Paulo não hesitou. “Foi crucificado.” “Crucificado!” O desapontamento do Romano alterou-lhe a cor com o desgosto. “Queres dizer que ele era apenas um homem comum que morreu?...que morreu com morte de um criminoso?... Que é que te faz pensar que um tal homem podia ser a encarnação do vosso Deus?” “Porque Ele ressuscitou dos mortos.” O Pró cônsul inclinou-se para frente a fixar o homem que fez esta espantosa afirmação. Os olhos escuros estavam calmos e condiziam com a certeza das palavras que ele tinha dito. O seu interesse aumentou. “Queres dizer que voltou novamente à vida?” “Então onde está ele?” A voz do feiticeiro dominou o momento como uma chicotada. “Pela terceira vez, onde é que ele está? Mostra-nos o homem que morreu e voltou de novo à vida e agora fala através da boca de Saulo, o fabricante de tendas. Diz a sua Excelência o que deverá fazer para que o vosso Cristo crucificado se revele a si próprio no seu “Poder e Glória.” Pela primeira vez, Paulo olhou para Elymas. Depois respondeu com a mesma tranquila simplicidade. “Ele há-de revelar-se a todo o homem que acredita. Somente três coisas são necessárias: Fé e esperança e amor.” Com um riso escarninho e triunfante, Elymas voltou-se para o seu mestre, mas Paulo estava à sua frente, e agora falou apressadamente. “Excelência, não tenho vergonha da verdade que prego, porque é o próprio poder de Deus a trabalhar para a salvação de todo aquele que acredita. Judeu, ou Grego, ou Romano. Todos os que seguem o caminho do Espírito de Deus, são membros da verdadeira família de Deus. Porque Ele criou-nos à Sua imagem, e depois enviou-nos o Seu próprio Filho para ser o primogénito de uma família de muitos irmãos; e não estamos destinados a ficarmos sempre crianças, à mercê de qualquer oportunidade de vento de ensino, ou de homens peritos na elaborada apresentação de mentiras, mas estamos destinados a agarrarmos firmemente na verdade, e crescer de toda a forma.” “A verdade,” repetiu Sérgio. “Se conhecêssemos a verdade…” Era a questão que perturbava os corações de todos os homens em toda a parte. A questão para a qual o próprio Paulo sabia somente parte da resposta. Mas o que sabia havia de divulgá-lo. “A verdade que sabemos é que há um Deus, o Pai de todos nós; e um Espírito que trabalha através de nós e vive em todos nós. De momento só entendemos uma fracção do que significa. Somos como homens que vêem o difuso reflexo de uma paisagem num espelho; mas virão tempos em que veremos a Verdade face a face, toda, e a entenderemos tão completamente como Deus agora nos entende a nós.” Sérgio Paulo sentou-se em silêncio por um momento. Quando falou foi quase para si próprio. “Fé e esperança e amor? Parece tão simples e percebe-se como sendo a verdade. Contudo se é a verdade e vivermos de acordo com ela, podia mudar inteiramente todo o mundo.” Elymas estava muito perturbado ao notar a impressão que Paulo tinha provocado no Pró-consul. Resolveu acabar com o feitiço. “Fé em quê? Num homem morto? Esperança de quê? Recompensas do Céu? E Amor!... Amor por quem? Por ladrões e assassinos?... Excelência, este homem enfeitiçou-te com palavras sem sentido. Tu és um homem sábio e letrado. Como ele próprio admite, este falso profeta não se importa com essas coisas…” Fez uma imitação notável da voz de Paulo. “Tudo o que sei é uma pequena fracção da verdade.” Avançou depois para frente e cuspiu as suas palavras de escárnio à cara de Paulo. “Porque não estudas para aprender toda a verdade? Porque é que o teu Deus todo-poderoso nos deu conhecimentos, sensibilidade e poderes, se tudo o que pede não é mais que “Fé e Esperança e Amor?” Os olhos de Paulo estavam em brasa. Estava de pé, e, apesar de ser um homem baixo, parecia elevar-se como uma torre acima do outro. “Tu filho do Demónio. Tu, inimigo de todo o bem. Tu sabes que digo a verdade.” Elymas diminuiu perante a súbita autoridade do tom do seu rival. Ter-se-ia retirado, mas os olhos que pareciam arder nos seus, mantiveram-no pregado ao chão enquanto a voz continuava. “Bem, eu sei como o Senhor lida com aqueles que tentam retorcer o estreito caminho que a Ele conduz. Enquanto continuares a tentar cegar os outros para a bondade de Deus, tu mesmo ficarás cego a viver nas trevas até que possas ver a luz da verdade.” Dando um grito, Elymas tapou os olhos com as mãos. Sérgio levantou-se. Barnabé e Marcos ficaram calados de admiração quando o feiticeiro começou a suplicar, chorando: “Ajudem-me, ajudem-me…” e estendia as mãos para eles, a tactearem no ar. “Peguem na minha mão… conduzam-me…” Ninguém se moveu. O Pró cônsul olhava para Paulo com nova admiração. “Tens o poder de provocar nos homens a cegueira?” “Não,” disse Paulo. “Não sou eu, mas Deus. Também eu uma vez tentei afastar os homens da verdade e também eu fui castigado com a cegueira. Porque é pecado contra a própria vida colocar tropeços no caminho daqueles que procuram a verdade.” O temor e admiração dominavam ainda a sua voz, quando Sérgio Paulo disse as palavras que Paulo tinha esperado ouvir. “Acredito que a Verdade existe.” No convés do pequeno barco que os levava de Chipre, Barnabé olhava para as praias da sua terra mãe a ficar à distância. “Querias deixar Chipre tão cedo?” Quem falava era Marcos que estava ao lado do seu tio, com um aborrecido enrugamento na cara. “Paulo pensava que o nosso trabalho ali tinha acabado.” Marcos estava irritado. “Porque é que ele agora se chama Paulo?” “Ele é um cidadão Romano, e é esse o nome dele, tanto como Saulo também. Fora de Jerusalém é conveniente ter um nome que não seja somente um nome Hebraico.” Marcos suspirou. “Eu não penso que alguma vez me acostume a isto.” Barnabé olhou-o com surpresa. “O quê?” “A misturar-se com Romanos e Gregos e a falar-lhes das nossas Escrituras.” Barnabé notou a boca jovem a tremer e ia mesmo dizer-lhe algumas palavras de conforto quando se ouviu uma voz: “Barnabé!” Viraram-se e viram Paulo a correr para eles. Com o seu cabelo desgrenhado ao vento, os pés descalços a firmarem-se no convés rolante, olhou para Marcos mais como um marinheiro que como operário de tendas, e ao falar podia ter sido o capitão do barco. “Já decidi a rota que devemos tomar. Este barco deixa-nos em Atalia. Há lá uma comunidade de irmãos. Continuamos para Perga, seguimos pela Ásia até Éfeso e depois para Tróia.” Estava animado, impetuoso e em completo comando. “Bem, que dizem a isto?” O coração de Marcos afundou. “Quando é que voltaremos a Jerusalém?” “Quem sabe? Naturalmente não antes de termos estado em Roma.” “Roma?” Paulo inclinou a cabeça para trás a rir. “Eu tenho intenção de algum dia ir a Roma.” Marcos não podia suportar isto por mais tempo. Sem dizer uma palavra deu uma volta e retirou-se.. Paulo ficou a olhá-lo.” Que é que se passa com Marcos? Está doente?” “Não”, disse Barnabé. “Talvez com alguma saudade da terra.” Paulo enrugou a testa. “Ele pediu para vir connosco. Certamente que ele sabia que temos que ir onde o Espírito nos conduz. É um homem ou uma criança?” “É ainda apenas um rapaz. Dá-lhe tempo.” Marcos estava debruçado sobre a guarda lateral do barco, voltado para a água azul, sem ver. Saudades da sua terra - mãe, ressentimento por Paulo ter subitamente assumido a liderança, vergonha da sua própria incapacidade de se aliar aos companheiros, tinham levado o seu espírito ao fundo, até à beira do desespero. Perdido nos seus próprios pensamentos nem sabia que Barnabé tinha ido à procura dele, senão ao sentir uma mão sobre seu ombro. Soube de quem era sem olhar à volta. Ainda virado para o mar disse: “Não vale a pena. Não consigo continuar.” “Nós precisamos de ti, Marcos. “Precisais?” A sua voz era terminante e descrente. “Qual é o problema? As coisas estão a andar demasiado depressa para ti? “Demasiado depressa e demasiado longe.” “Não há lugar demasiado longe. “Ide a todas as nações da terra.” Foi o que o Senhor disse. Marcos não deu resposta. Barnabé inclinou-se ao lado dele e continuaram a conversar. “Em todo o lado onde houver homens, há filhos de Deus. Como vão conhecer a Verdade se não formos nós a levar-lha?” “Mas como sabemos que este é o tempo correcto?” Os pensamentos que tinham vindo a atormentar Marcos durante dias saíam-lhe agora pelo boca fora. Como sabemos que estão preparados para isso? Os nossos antepassados viveram nas trevas durante séculos antes de Deus se lhes revelar; e então houve geração atrás de geração de profetas e mestres…milhares de anos de fé em Deus antes de o Messias vir com a Sua mensagem de perdão e esperança… Como podemos esperar que estes pagãos que não têm nada anterior a não ser a adoração de ídolos e superstição e que voltam de um deus para outro com a facilidade de quem muda de vestir, se convertam em tementes de um Deus porque Paulo lhes traz o seu evangelho de fé e esperança e amor?” “Não estamos sozinhos, Marcos.” “Eu sei.” Por um momento a vergonha sobrepôs-se às outras emoções e amparou a sua cabeça com as mãos. ”Eu não O esqueci, Barnabé. Juro-te que não perdi a fé.” Então levantou a cabeça e olhou ansiosamente para a cara de seu tio. “Mas nós podemos cometer erros… Vês, Saulo e tu nunca vistes Jesus, quando Ele estava connosco em carne. Eu vi. Era apenas uma criança quando Ele foi a nossa casa, mas lembro-O e do que Ele disse. Coisas tão vivas que tinham que ficar na memória de um criança… “Não deiteis as vossas pérolas a porcos” disse Ele, “ou o suíno pode pisá-las e voltar atrás para vos magoar”… Eu naquele tempo ri-me, a imaginar uma quantidade de porcos a pisar as pérolas. Mas tenho pensado nisso muitas vezes desde então…Ainda ontem lembrei isso na corte Romana.” Barnabé pensou por um momento e depois disse com um sorriso: “Mas o “Suíno”não voltou para nos magoar. Acreditou.” “Por agora, sim. Mas por quanto tempo?” As perguntas de ansiedade ficavam sem resposta. “Não deveríamos ter ficado em Chipre? Tu e eu pelo manos. Não deveríamos ter construído ali uma igreja de crentes da mesma forma que em Antioquia? Estão eles realmente melhor do que antes de lá termos ido?” “Sim. Estão. O fermento está no pão.” “O quê?” “Quando a tua mãe faz pão, ela põe dentro o fermento e deixa que o pão cresça. Não fica a olhar e a incomodar-se por o trabalho poder ficar sem ser feito. Acredita no fermento vivo…Esta é outra história do Mestre. Foi Pedro que me disse. Marcos pôs a cabeça entre as mãos novamente. A sua voz traía o seu conflito interno ao perguntar pouco mais que em murmúrio: “Eu falhei para vós? “Não.” Barnabé pôs a sua mão sobre o ombro do jovem. É como Paulo disse. Todos somos membros do mesmo corpo, e cada um tem o seu trabalho específico a fazer. As mãos servem o corpo de uma forma, os pés de outra. Os olhos e os ouvidos, a língua e os dentes têm diferentes funções mas pertencem à mesma cabeça. Cristo é a nossa cabeça e nós fazemos o nosso trabalho para Ele. Seria tolice que qualquer membro pensasse que outro tinha falhado por ter sido designado para fazer um trabalho diferente.” “Eu pensava que este era o meu trabalho.” “Pode ainda vir a ser. Mas talvez não estejas completamente preparado. Como os pés que podem andar mas ainda não aprenderam a correr. Marcos levantou o olhar . “Se eu vos deixar…se voltar atrás… Paulo ficará zangado?” De maneira nenhuma Barnabé deu a conhecer a suspeita de que Paulo ficasse verdadeiramente muito zangado. “Eu vou falar com ele,” disse, com um sorriso de confiança, e foi à sua procura, deixando Marcos ainda a pensar profundamente. Os três missionários viajaram juntos até Perga na Panfília, e aí Marcos abandonou os outros para continuarem a viagem sozinhos. Foi uma partida infeliz, porque mesmo Barnabé não pôde convencer Paulo a pensar de Marcos senão como um desertor. Quando Marcos os via a subirem com dificuldade o caminho irregular da montanha, estava dividido entre o desejo de correr atrás deles e a saudade do seu próprio povo que atraía o seu coração. Olhou até estarem fora de vista e depois começou a sua viagem solitária de volta a Jerusalém. Paulo e Barnabé viajaram através dos países da Galáxia e Pisídea, pregando nas sinagogas que Jesus que foi crucificado, era o Messias de Israel. Foi uma viagem dura, porque as cidades e aldeias ficavam a milhas de distância e as estradas eram frequentemente carreiros de montanha. A saúde de Paulo começou a falhar, mas apesar de o seu corpo muitas vezes ir vergado de dor e a sua cara demonstrar as marcas do sofrimento, parecia conduzido por uma força interior, por alguma coisa que ardia dentro dele e não podia ser apagada.
Estes eram países pagãos, alguns deles povoações de guarnição de Roma, outras cidades onde predominava a influência Grega, e algumas povoações e aldeias mais pequenas onde os habitantes pareciam ter escapado à influência e ao culto até dos deuses mais antigos. Mas em cada lugar existia uma comunidade Judaica, e onde havia Judeus havia uma sinagoga, e era nas sinagogas que Paulo e Barnabé pregavam a sua mensagem. Quando Paulo pregava, o doente e cansado viajante transformava-se. Era como se a própria chama da vida, vida como a que Deus deu ao homem não corrompido, gozosa, cheia de graça e verdade, ardesse nele como uma tocha e se derramasse dos seus lábios em palavras de fogo. Mas os chefes nestas remotas sinagogas não estavam de forma alguma satisfeitos ao verem os seus membros a ir atrás destes pregadores viajantes que traziam uma tão estranha e perturbadora mensagem. Em Icónio a pequena comunidade Judaica tinha agregado ao seu número prosélitos de entre alguns dos mais ricos e mais influentes cidadãos Gentios, e foi no Sábado que Paulo e Barnabé foram convidados a falar na sinagoga que estava cheia. Depois de o Rabi chefe ter feito a leitura da Lei e dos profetas, dirigiu-se aos visitantes. “Meus irmãos, damo-vos as boas vindas à nossa sinagoga. Se tendes alguma mensagem de encorajamento para as pessoas, teremos todo o gosto em vos ouvir falar.”
Marcos abandona Paulo e Barnabé


Paulo levantou-se e tomou o seu lugar ao lado do Rabi. “Homens de Israel, e todos vós que temeis Deus.” A sua voz ecoou, atingindo não só os que estavam na sinagoga, mas também a multidão dos pagãos que se tinham juntado à volta da porta aberta. “A mensagem que vos trazemos é esta: a promessa feita aos nossos antepassados foi cumprida. “O Único Santo de Israel”, o Amado Filho de Deus, nascido da linhagem de David segundo a promessa de Deus, o longamente-esperado Messias, veio até nós.”
Houve uma agitação e um burburinho entre o povo, e o Rabi sentou-se à parte na sua cadeira surpreendido. O pregador continuou. “Não veio sem ser anunciado. Lembrais a promessa de Deus: “Eis que envio antes o meu mensageiro para preparar o caminho?” Esse mensageiro era um homem do nosso próprio tempo chamado João, que gastou a vida a motivar as populações de Israel a preparar-se para o seu Messias e a baptizá-las em nome daquele que havia de vir. Assim, o povo de Israel estava preparado para acolher o seu Messias… E Ele chegou enquanto João ainda O anunciava.”
O Rabi sentou-se apreensivo, quando excitados sussurros e murmúrios de descrença começaram a ouvir-se na congregação.
“Sim, meus amigos.” Calaram-se novamente, a olhar para o pregador. “Depois de João,
Deus enviou o Seu próprio Filho para viver entre o Seu povo como um homem entre os homens…Mas o povo de Jerusalém e os seus regentes não O reconheceram. Acreditareis vós quando vos disser que prenderam o seu Messias e convenceram o Governador a condená-lo a ser executado como um criminoso?”
De novo se levantaram vozes e agora havia arrepios de horror, de mistura com excitação de descrença.
Mas nós vemos agora que até isto estava de acordo com as Escrituras. Vós lembrais as palavras: “Foi desprezado e rejeitado pelos homens… Levado como um cordeiro para o matadouro…” Jesus o Salvador foi crucificado; mas isto não foi o fim. Foi de alguma maneira o princípio. Havia outra profecia para ser cumprida: “Deus não permitirá que o Seu Santo Único experimente a corrupção.” Jesus morreu na cruz, o Seu corpo foi sepultado num túmulo, mas…Deus ressuscitou-o dos mortos.”
Não houve agora murmúrios, mas para o Rabi, o silêncio que se seguiu a estas últimas palavras era ainda mais agoirento. Como o silêncio que acontece antes de um terramoto. Os seus sentidos e o seu fértil cérebro de estudioso, pareciam estar em guerra dentro dele, enquanto esperava com os outros pelo que poderia vir a seguir.
Como se fosse uma resposta a uma pergunta não feita, a voz de Paulo elevou-se de novo: “Foi visto por aqueles que tinham vindo com Ele da Galileia, homens que tinham trabalhado com Ele durante três anos, e que estavam aos pés da cruz quando Ele morreu. Falaram e comeram com Ele muitos dias depois de ter ressuscitado dos mortos.
Estes homens são as Suas testemunhas em Jerusalém. Nós, somos as Suas testemunhas diante de vós…Vimos dar-vos a boa nova…O perdão dos pecados é-vos oferecido através deste homem Jesus, mesmo daqueles pecados dos quais a lei de Moisés nunca poderia libertar-vos. Uma só coisa é necessária…Que acrediteis n’Ele.”
O silêncio da congregação arrebatada foi perturbado, quando com irados murmúrios alguns dos mais velhos começaram a abrir caminho para a saída da porta. Paulo ouviu-os e clamou: “Tende cuidado meus irmãos, não seja caso que a reprimenda do profeta se possa aplicar a vós.” Os homens abrandaram um pouco, meio virados para o encarar, embaraçados por serem discriminados desta maneira, mas não querendo ser considerados grosseiros. Paulo desenrolou o pergaminho que tinha na mão, e leu com tranquilidade as palavras do profeta. “Olhai para isto, vós almas desprezíveis, e perdei-vos em admiração. São tais os milagres que estou a fazer nos vossos dias, que se alguém vos viesse contar a história, não acreditaríeis nela.”
As bem conhecidas palavras que tinham sido lidas naquela sinagoga em muitos Sábados, pareceram de repente saltar para a vida. Pareceu ao Rabi estar a ouvi-las pela primeira vez. E quando Paulo enrolou o manuscrito e desceu da plataforma do pregador, ele levantou-se como se fosse para lhe falar, mas não houve conversa. Paulo fez-lhe uma vénia e depois seguiu pelo meio da multidão silenciosa, passou pelos homens hostis que o olhavam com fria admiração, e juntando-se a Barnabé, saiu para a luz do sol. Logo os dois missionários foram rodeados pelos cidadãos pagãos que tinham estado a ouvir da porta e pelas mulheres da galeria superior que tinham corrido escadas abaixo para os cumprimentarem. A congregação empurrava-se através das portas para se juntar à multidão do lado de fora, e as suas vozes agudas e exaltadas eram ouvidas pelo Rabi que estava sozinho na sinagoga vazia. Que havia de pensar? Que havia de fazer? Todos os seus anos de trabalho, a fé de seus pais, a lei Hebraica que tão estritamente tinha ensinado e cumprido, tudo parecia estar a desmoronar-se aos seus ouvidos. A vida não tinha sido fácil para ele neste distrito longínquo e pagão, tão afastado da terra-mãe. Não tinha sido fácil para ele guardar e orientar o seu rebanho. Mas tinha tido algum sucesso não apenas nisto, porque tinha conseguido atrair convertidos à fé Judaica de entre alguns dos cidadãos mais influentes. Homens Gentios e mulheres que davam generosamente para apoiar a sinagoga e os Judeus mais carenciados. Mas agora o quê? Parecia que o seu rebanho começava já a abandoná-lo para seguir o portador de algumas novidades fantásticas. O Messias de Israel tinha chegado. Era fantástico? Podia ser reconhecido como verdade? Que iam pensar os prosélitos mais ricos? Que diziam as autoridades de Jerusalém? Quem podia aconselhá-lo? Não foi deixado só por muito tempo.
“Rabi! Rabi!”
Um comerciante rico, um dos mais influentes Judeus da cidade, aproximou-se dele apressadamente.
“Que é que isto quer dizer, Rabi? O que é que vais fazer?”
Ainda indeciso, o Rabi respondeu, “Não sei.”
“Sabias que eles iam falar daquela maneira?”
O Rabi dominou a sua indecisão por um momento. Aqui estava uma pergunta a que podia responder.
“Não. Como podia eu saber? Eram visitantes da terra mãe. Homens da nossa fé actualizada de Jerusalém. Naturalmente pedi-lhes que nos falassem, para nos darem qualquer mensagem da terra de Israel. Como podia eu adivinhar que a sua mensagem havia de ser…isto?”
Antes de o comerciante poder falar, outra pessoa se tinha aproximado, um jovem rapaz
ainda muito novo. “Rabi. É verdade o que estes homens dizem? Que o Messias já veio?”
Aqui estava uma pergunta a que não podia responder. Olhou para a cara corada e exaltada do rapaz. “Não sei.” O comerciante ficou chocado. “Não sei? Tens que saber. Reparou nos seus olhos enevoados, e na expressão indecisa. “Rabi! Não queres dizer que tu acreditas que esta fantástica história pode ser verdadeira?”
“Rabi, é verdade?” Estavam cada qual de seu lado, os representantes do seu rebanho, um velho ortodoxo, e um jovem a procurar saber. E ele, o pastor, sem poder orientá-los. “Centenas da nossa gente estão a acompanhá-los para as suas instalações. Alguns dos pagãos também. Está certo que nós possamos ir ouvi-los, Rabi?”
Está certo? Um rapaz que ele tinha ensinado desde criança, esperava uma palavra sua. Tinha obrigação de transmitir-lha. Mas ele estava calado.
“Tens que dar ao povo uma orientação.” A voz do comerciante traduzia o eco dos seus pensamentos. “Desculpa-me, Rabi, mas tens obrigação. Um rumor como este vai espalhar-se como fogo, se não for imediatamente apagado. Vai dividir as pessoas que não saberão que caminho seguir.”
Ele tinha obrigação de falar. A sua voz foi hesitante. “Se eu pudesse saber por autoridade de quem eles espalham este…este rumor. Pode vir do Templo.”
“Mas não disse ele que foram os regentes do Templo os que rejeitaram o Messias?” interrompeu o jovem rapaz. O comerciante estremeceu com esta pergunta, mas o rapaz não fez caso disso. “Foram os regentes do Templo, não foram, os que O entregaram para ser executado?”
“Assim vêem,” disse o comerciante em triunfo, há já divisão. Mesmo em Jerusalém, pelo que parece. Não podemos permitir que aconteça cá. Somos aqui tão poucos.” Aproximou-se ainda mais do Rabi e pegou-lhe no braço. “Tens que te impor– desculpa-me
se pareço estar a querer ensinar-te, meu Rabi – mas tens que te impor com força a um dos lados.
Mas que lado? Era como se as duas vozes fossem as vozes da sua consciência. Disse o que pensava em voz alta. “Um lado ou o outro lado.”
O comerciante soltou uma horrorosa arfada, mas a voz do rapaz levantou-se em exaltação.
“Então pode ser verdade? Pode ser como disse o pregador, que chegou o tempo da libertação.” Pegou na mão do Rabi e suplicou como uma criança. “Posso ir, Rabi, posso ir ouvir o que eles têm para nos dizer?”
“Rabi!” era a advertência do outro lado. A mão amiga no seu braço transformou-se em aperto férreo. Foi isto que lhe deu a solução. A mão confiada da criança pareceu-lhe mais importante que o aperto da mão do homem influente. Voltou-se para o rapaz. “Sim, podes ir, meu filho.” Sentiu o aperto do seu braço a abrandar e ouviu outra horrível arfada. A sua voz recuperou a autoridade familiar quando falava como um mestre ao seu aluno. “Mas lembra-te de tudo o que te foi ensinado. Usa o teu juízo e não te deixes desencaminhar.” Olhou para o jovem a correr e ouviu-o a chamar os seus amigos, “O Rabi diz que sim…Ele diz que pode ser verdade…De qualquer modo não há perigo em ouvir….Vamos lá, qual foi o caminho por que foram?” As vozes foram esmorecendo. O Rabi tomou uma decisão. Encaminhou-se para a porta. A voz do comerciante resmungava atrás dele: “Para onde é que vais?”
“Tenho o dever de falar com estes homens.”
“A mão agarrava-lhe de novo no seu braço. A voz entrava-lhe nos ouvidos. “Fala com as pessoas. Tu és o líder espiritual neste lugar. Afirma-te agora, Rabi. Põe estes homens fora da cidade.” Apesar da sua tristeza, a voz do Rabi foi firme “Tomarei a atitude que julgar necessária.” Libertou o seu braço do aperto controlador e encaminhou-se para a porta, passou por um grupo de mulheres que estavam fora, e abalou pela estrada que estava agora deserta. O comerciante seguiu-o até à porta, e ficou com as mulheres , a olhar para o homem que se afastava.
“Bem realmente!” queixava-se uma senhora elegantemente vestida. “Eu pensava que o Rabi tivesse alguma coisa a dizer-nos. Eu particularmente desejava falar com ele.”
“Ele não sabe o que há-de fazer disto, esse é o problema,” disse o comerciante que estava irritado mas nada desmotivado por causa de o Rabi não ter feito caso da sua advertência. “Ele tem que afirmar a sua autoridade depressa, como lhe disse. Mas ele é manso, como sabeis. Eu não quero faltar-lhe ao respeito, mas é como muitos desses homens letrados, incapazes de tomarem uma decisão numa emergência.”
Ele encontrava-se rodeado, o único homem no meio grupo de mulheres preocupadas.
“Mas o que é que se há-de pensar?
“Porque é que se permitiu a estes homens virem pregar tais disparates blasfemos?”
“Na sinagoga de todos os lugares!”
“Que lhe pareceu isto, senhor?”
A última pergunta veio da mulherzinha humilde que estava a seu lado. Ele começou por se divertir. “Puro disparate, claro. E disparate maldoso, também. O Rabi devia ter mandado calar o pregador logo que ele começou com essa conversa do Messias. Agora todos os jovens estão animados e exaltados, e se não formos muito cuidadosos, será formado um novo “culto”. Bem, se for assim, tem que ser fora da sinagoga. Temos que ser firmes quanto a isso.”
“Eu não sei o que o meu marido dirá,” disse uma prosélita Gentia rica. “Ele era contra eu adoptar a fé Judaica logo ao princípio. Mas se ele ouve falar disto…”
O comerciante rico concordou calorosamente com esta senhora influente.
“Assim é que está certo.” “É assim que deve ser. Nós da verdadeira fé seremos considerados ridículos, e perderemos todos aqueles que ganhámos para o Senhor Deus.
“Bem, o Rabi perderá com certeza o meu apoio se encorajar esta espécie de coisas,” disse com firmeza a senhora, sentindo tudo tão importante e acertado como o comerciante. “O que mais me atraiu acerca da vossa fé desde o princípio foi a sua solidez, a sua imutabilidade. Um Deus, uma Fé, Uma Lei. Mas se vamos aceitar estas estranhas ideias de homens a ressuscitar dos mortos…”Acreditai neste homem e sereis salvos”… toda essa espécie de coisas a serem admitidas, bem, não seremos muito diferentes dos pagãos que estão sempre a seguir deuses estrangeiros conforme a fantasia os encaminha.”
A mulherzinha que era Judia perguntou. “Não pensam que poderia haver nisto alguma verdade?”
O comerciante rico, um homem da mesma raça, olhou para ela condescendentemente.
“Minha querida senhora, eu sou um homem negociante e, embora seja eu a dizê-lo, eu sei como um negócio se faz. Sei o tempo próprio e o caminho certo para andar com as coisas. Bem, com todo o devido respeito e sem querer ser irreverente, eu não esperaria menos do Senhor Deus que de mim próprio.” Fez uma pausa para permitir que as mulheres assumissem este extraordinário e atrevido pronunciamento. Olhavam para ele à espera da próxima pérola de sabedoria a sair dos seus lábios. Inspirou profundamente e dirigiu-se a todas elas. “Imaginam que Deus, o Todo-Poderoso e Omnipotente Senhor, havia de escolher uma tal forma de enviar ao Seu povo escolhido o seu Messias? Sem ser conhecido a não ser dos Seus parentes imediatos, preso como um impostor pelos próprios sacerdotes de Deus em Jerusalém, e executado como um criminoso? Qual, com todo o devido respeito, seria a vantagem disso?” Houve respeitosos murmúrios de concordância, mas a pequena mulher persistia.
“Mas dizem que Ele ressuscitou dos mortos.”
“Dizem, dizem!” O homem rico voltou-se para ela irritado. “Não consegues ver que não há mais que mentiras e rumores?” Ela não respondeu a esta pergunta retórica, mas continuou a olhar para ele inquisitoriamente. Havia uma nota de exasperação na voz dele ao continuar. “É possível que esses fanáticos que O seguiram quando Ele estava vivo acreditassem que Ele era o Messias. Então foi condenado à morte. Eles não puderam suportar terem sido enganados, e por isso inventaram essa história.”
“Mas porque haviam de fazê-lo?” A sua voz foi tímida e o olhar que ele lhe lançou devia impedir mais perguntas, mas ela não tinha tido uma resposta satisfatória e a sua dúvida tornou-a corajosa. “Eu quero dizer, porque é que eles haviam de andar todo este caminho para contarem uma história tão extraordinária a não ser porque ela era…” Ela corou e corrigiu-se a si própria, “…a não ser por acreditarem que era verdadeira?”
A senhora rica tinha tido o suficiente desta argumentação enfadonha, e antes de o comerciante poder pensar numa resposta suficientemente arrasadora, levantou a voz. Era uma voz aguda, que se impunha a ser ouvida: “Se eles acreditavam ou não que era verdadeira, não importa nem aqui nem lá. O que importa é que tal ensino não tenha lugar na sinagoga.” Ela incluiu os Judeus tanto no seu olhar fulminante como no seu gesto de varrer de mão. “A não ser que eu não tenha percebido nada daquilo que me foi ensinado.”
O homem de negócios que conhecia o caminho certo para andar com as coisas, sabia também como cativar os fregueses. Voltou-se para ela e o seu olhar de admiração não era completamente fingido. “Está perfeitamente certo. Absolutamente correcto. Eu digo muitas vezes que vós os recém-vindos à fé, apanhais a verdade das coisas melhor que alguns de nós que fomos educados nela.” Olhou para a mulherzinha para que estas palavras produzissem o seu efeito antes de continuar. “Não que nós não acreditemos que o Messias há-de vir – esperamos esse dia não menos ansiosamente que os nossos antepassados. Serei o primeiro a afirmá-lo. Mas quando vier, será com sinais e milagres. Não haverá dúvida na mente de qualquer verdadeiro crente. Ele virá em glória e com anjos a anunciá-lo. Não dependerá de um viajante sujo, operário de tendas para nos contar a história em segunda mão.” Ficou satisfeito com o seu discurso. Parecia-lhe que tinha exposto todo o assunto em poucas palavras. Mal podia acreditar nos seus ouvidos quando a voz tímida a seu lado persistia de novo.
“Mas há diversas formas de sinais e milagres. É como ele disse, com aquele pequeno texto das Escrituras que citou no fim…” São tais as maravilhas que estou a realizar nos vossos dias, que se alguém vos contasse a história não acreditaríeis nela.”
Ela olhou à volta para todos os rostos. Todas estavam a olhar para ela em silêncio como se tivesse dito alguma coisa indecente e, subitamente embaraçada com a sua própria coragem, corou e saiu apressadamente. O comerciante olhou para ela com frieza e voltou-se para a sua senhora aliada. “Vedes como são apanhados. As mulheres, com todo o respeito que vos é devido, minha senhora, as mulheres e os jovens serão os piores. Temos que tomar as coisas nas próprias mãos. Se o Rabi não agir, podemos convocar uma reunião de cidadãos liderantes. Há um grupo deles membros da sinagoga, como sabeis. Podemos tratar todo o assunto numa base oficial.” O homem de negócios era um cidadão leal e espirituoso. “Não há lugar para perturbadores neste lugar. Eu penso que poderei fazer com que se juntem alguns colegas meus a elaborarem uma queixa. Contanto que os afastemos da sinagoga, não haverá perigo. Depressa serão escorraçados da povoação pelos Gentios.”
Assim em Icónio, como noutras localidades, a população estava dividida. Muitos ouviam o ensino dos apóstolos, mas outros, principalmente os cidadãos líderes e Judeus influentes, acusavam-nos de blasfémia e feitiçaria e conseguiram expulsá-los da povoação. Antes de saírem, permitiram que Paulo fizesse uma última declaração na sinagoga. “Nós somos irmãos da mesma raça,” disse ele, “e era importante que a palavra de Deus fosse trazida até vós em primeiro lugar. Mas uma vez que a rejeitais, voltamo-nos para os Gentios.”
Paulo e Barnabé na sua viagem através da Galáxia


Paulo e Barnabé rejeitados em Icónio


Parte 4





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